quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

13 - Para ver o sol

Ainda não acreditava que tinha adormecido ali, na porta do quarto de tia Inês. Não fazia idéia das horas, mas parecia ser madrugada ainda. Olhei de novo pelo buraco da fechadura, Isabel tinha adormecido. Estava deitada na cama de tia Inês e parecia ter pesadelos, pois se mexia à todo instante e tinha uma expressão assustada. Forcei a porta para abrir, num ímpeto de salvá-la de qualquer coisa ruim. Estava aberta, achei estranho, mas entrei. Talvez Isabel tivesse aberto para mim, deveria saber o quanto eu queria entrar. Ela ainda vestida e maquiada, dormia na cama e os cabelos negros fugiam ao coque, esparramando-se pelo lençol. Voltavam ao seu rosto as feições de menina.

Deitei-me ao seu lado, tomando o cuidado necessário para não acordá-la. Fiquei observando sua respiração, parecia ofegante. Ah, Isabel, não se desespere, eu pedia em silêncio esperançoso. Virou-se de frente para mim e segurou minha mão, acho que podia sentir minha presença.
Passou a mão nos cabelos, despenteando-os de vez. Das longas madeixas cheias, caíram em seu rosto dois cachos delicados. Enquanto observava o brilho dos seus cabelos, ela acordou abruptamente e me abraçou com a mesma força do abraço que me deu quando cheguei à casa. Senti pingar no meu ombro uma lágrima quente, Isabel chorava. Um choro sem soluço, mas profundo como uma enchente.
- Sonhei uma coisa, Téo. Sei onde Cecília está!
Sua voz estava cheia de certeza, mas eu estava perplexo.
- Ela não se encontrou, não está em um lugar bom. Lá só tem pessoas tristes como ela, pesadelos e medos. Ela ainda precisa de luz, de muita luz.
Saiu do meu abraço e foi até a janela do quarto de tia Inês, que nunca tinha sido aberta, se minha memória não falhava. Fez força contra a ferrugem e a poeira e escancarou a janela.
Ainda era noite, mas o sol dava os primeiros sinais da sua presença.
- O sol quer nascer, vamos deixá-lo entrar.
Arrancou dos pés as sandálias altas e segurando o longo vestido de gala, saiu do quarto. Atravessou o corredor com rapidez, como se tivesse pressa de agir. Entrou no escritório e abriu as janelas com força, correu até a biblioteca, a sala, a cozinha, o seu quarto e fez o mesmo movimento apressado e urgente em todos os cômodos.
Parou então em frente à escada de Cecília. Respirou fundo, segurou com mais força a barra do vestido e subiu pisando forte. Ao entrar no quarto, lágrimas escorreram dos seus olhos instantaneamente, mas parecia corajosa e plena. Olhava em volta com um sorriso terno, com carinho pela irmã que estava longe e perceptivelmente saudosa de sua presença fria. Abriu as janelas do quarto de Cecília, como em um ritual, que lhe dava paz.
- Agora vem!
Puxou-me pelo braço até o jardim, seguindo até o roseiral, chegando ao ponto mais alto, estendeu os braços para o céu.
- É disso que precisamos. Eu, você e Cecília.
Pela primeira vez tinha dito o nome da irmã sem respirar fundo antes. Parecia que tinha se libertado do medo de pronunciar o nome dela.
- Você não quer dormir, Isabel?
Parecia bastante sonolenta.
- E perder a chegada do sol?
Estava encantada, como se assistisse ao maior dos espetáculos e falava de ver o nascer do sol, como algo óbvio. E talvez para ela fosse.
Isabel sentou-se na grama, sem medo de sujar o vestido. Seus cabelos bagunçados estavam mais lindos que nunca, e a expressão de realização brilhando em seu rosto.
Eu estava distraído com ela e com tudo a nossa volta. Isabel me deu um beslicão forte no braço.
- Preste atenção!
Ordenou séria.
Isabel parecia exausta, mas como estava linda! Fiquei olhando a cena de fora, prática que me era tão comum, principalmente com ela, que era sempre uma bela paisagem. Isabel saíra do seu baile de gala, despenteada, a maquiagem dos olhos borrando, entre as flores, deitada na grama. Era como um poema. Os primeiros raios de sol brilhando em seu vestido de cetim e em seu rosto as expressões perfeitas. Quis pintar aquela cena, quis Isabel em minha tela. Fiquei imaginando suas cores e seu brilho refletido em minhas tintas. O sol apresentava um belo espetáculo. Fazia-se presente e hipnótico em sua aparição, mas eu queria observá-lo refletido nos olhos de Isabel. Era ainda mais bonito.
Esparramou-se na grama, com os braços abertos. Virou o rosto delicado para mim e me permitiu um sorriso cheio de plenitude e realização. Encostou o queixo no braço de pele macia e branquinha.
- Agora posso dormir.
Fechou os olhos de imediato, como se estivesse todo o tempo pronta, esperando o momento certo para adormecer. Mas eu não era como Isabel e começava a sentir a insônia presente em mim. Corri até a casa para buscar algo para desenhar, com receio de deixar Isabel lá, sozinha. Não havia trazido nada para desenhar, tinha até me esquecido desse prazer, às vezes me ocorria isso.
Isabel costumava dizer que precisava atuar, necessitava tanto quanto respirar, para que não se sentisse sufocada. Achava bonito o jeito que ela falava das coisas que gostava, eu nunca fui assim.
A vida era mesmo injusta... Isabel se sentindo sufocada por não poder atuar, servindo pipocas e sorrisos no Cine Santa. Seu sonho era o cinema, e ironicamente, foi o que ela conseguiu.
Depois que Isabel e Cecília cresceram e saíram de casa, tia Inês voltou à Arraial do Cabo, para levar uma vida pacata, e Isabel teve que trabalhar muito para se manter, abandonando seu antigo sonho de ser atriz. Eu terminei a escola e fiquei de papo pro ar, para só dois anos depois ingressar na faculdade de belas artes, e minha vida tem sido a base da herança que me foi deixada, pintando, vendendo um ou outro quadro. Mas, no entanto, Isabel parece mais feliz, nunca entendi.
Não tinha papel, não tinha lápis, não tinha nada que escrevesse na casa. Lembrei-me dos diários de Cecília. Havia algumas folhas em branco. Arranquei-as com cuidado e corri até a sala para pegar próximo à lareira, carvão. Era o que me restava, e a vontade de desenhar me tomava o corpo inteiro e nada mais dividia espaço com esse desejo em minha cabeça.
Corri até onde estava Isabel, o desenho se construiu sem esforço, minha mão era empurrada por um impulso maior, em poucos minutos estava pronto. Ainda faltavam cores, ainda faltava o perfume, das flores e de Isabel. Mas suas formas descansadas estavam lá, no papel amarelado e sentido dos diários de Cecília.
Estava lá seu cabelo bonito, suas mãos delicadas e todo o meu apresso por ela.

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