quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

12 - Buraco da fechadura

Isabel tinha surtos de vaidade, e me deixava sozinho para ir ao quarto de tia Inês no fim das tardes para ficar provando todos os vestidos, sapatos, se maquiando na penteadeira por horas a fio. Só saía de lá à noite, toda bonita e perfumada. Quando saía do quarto, ficava um tempão andando pela sala ouvindo o sapato alto fazer barulho no piso de madeira e rindo como uma criança.
Tia Inês não deixava Isabel usar sapato alto, nem maquiagem, talvez por conta disso, mesmo com o passar dos anos, manteve um jeito leve ao se arrumar. Não precisava de nada disso, nem combinava. Era linda ao natural. Mas era engraçado ver Isabel realizar seu desejo infantil de ser vaidosa e produzida como tia Inês.
Ainda fazia frio. A chuva cessava durante o dia para dar espaço a um sol fraquinho, mas que animava Isabel, e então à noite voltava a cair o temporal e baixava consideravelmente a temperatura. Isabel me deixava sozinho e eu ficava em frente a lareira pensando naquilo tudo. Nós dois naquela casa, conflitando com o que havia dentro de nós. Tantas coisas que eu nem ousava antes disso questionar ou descobrir, mas que eram inevitáveis agora com Isabel e todas as nossas lembranças.
Quanto tempo mais ficaríamos ali? Perguntei-me enquanto observava o fogo da lareira.
Isabel era minha bailarina na caixinha de música, que eu observava e seguia hipnotizado. Gostava de assisti-la em suas necessidades, fossem do corpo ou da alma, pois só sua presença já me fazia bem. Minha vida era monótona e vazia. De certa forma, aqueles dias tinham me devolvido o brilho ingênuo da juventude. Juventude que eu podia constatar em minha identidade, mas que há muito tempo não sentia em minha alma. Era Isabel, meu pequenino e profundo raio de sol. Olhar aquela sala vazia fazia eu me lembrar de anos atrás, da presença de Cecília.
Quando eu e Isabel estávamos apenas começando a nos interessar pelo mundo à nossa volta fora dos limites da casa, de nossas brincadeiras, era Cecília quem observávamos. Ela parecia tão parte desse mundo novo que se abria para nós, como uma porta. Ela sim existia. Digo existir na essência filosófica da palavra. Ela se lançava para fora (pelo menos era o que achávamos), para além do mundo fechado em que eu e Isabel nos condicionávamos. E nós queríamos tanto gozar dessa existência.
Talvez Isabel não visse Cecília assim, não tomasse da sua vida uma janela para o desconhecido. Ou talvez tomasse, mas não se contentasse em apenas observar a vista da sacada através de Cecília, como eu. Li uma vez que a ciência havia comprovado que as mulheres sentem as coisas diferentes dos homens. Engraçado. Queria ver provarem que alguém sente igual à outra pessoa. Imaginei como seria se Isabel sentisse como eu. Como seria a vida sem nossos debates, sem a poesia no olhar de Isabel para o mundo que tanto me encantava.
De fato, eu gostava muito da diversidade dos pontos de vista. Satisfeito com minhas conclusões, desejei Isabel ao meu lado e seus olhos brilhantes, sedentos de saber e de vivência. Caminhei pelo corredor escuro a caminho do quarto de tia Inês. Ouvi a voz doce de Isabel desafinando lindo em uma marchinha de carnaval. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Minha vontade de vê-la era tanta, que não resisti às grandes fechaduras. Quando pequenos ficávamos olhando tia Inês embrulhar os presentes de Natal, para ver o que cada um ia ganhar.
Da fechadura via apenas a cama empoeirada de tia Inês e os pedacinhos de Isabel, que a breve abertura me permitia. Vi seus cabelos ondulados fazerem volume, balançando enquanto amarrava-os em um coque bem preso. Observei as mãos finas prenderem seu cabelo em um laço de fita sedoso.
Isabel levantou-se da penteadeira ainda batendo com leveza em seu rosto a maquiagem, que corava ainda mais suas bochechas, naturalmente rosadas. Levantou-se e pude ver que o corpo bem feito estava coberto por um vestido de gala de tia Inês, que ela só usava em casamentos, bodas e outras festas importantes. Era um vestido dourado, que os anos haviam deixado cor de bronze e ainda mais bonito pela nostalgia. O espartilho desenhava as curvas de Isabel e deixava seu colo à amostra. Moveu os braços em um gesto delicado e borrifou perfume em si. As mãos pareciam mais finas e alongadas e um anel de brilhantes solando em seu dedo médio. Uma expressão sedutora e séria entregava ao rosto de Isabel os anos que esquecia de refletir, pelo sorriso de menina que mantinha. Isabel era uma mulher, uma linda mulher. Como eu podia ter demorado tanto para perceber? Murmurava quase em silêncio uma canção triste agora, enquanto se olhava no espelho, se admirando, notando suas semelhanças com tia Inês. Brincando de ser a mãe, talvez. Só agora eu sabia reconhecer que mesmo com todas as suas falhas, tia Inês era uma mulher fantástica. Perdeu cedo o marido e teve que trabalhar para manter a casa e as filhas, sofrendo todo o tipo de dificuldade pelo preconceito irritante com as mulheres solteiras ou com a falta de experiência. Foi uma mãe ausente, não porque quis, mas porque não pôde estar mais perto.
Com o passar dos anos e principalmente após a conversa com Isabel, pensava nela com uma enorme admiração, e nos últimos dias com certo dó, ao imaginá-la recebendo a notícia da morte de Cecília.
Queria estar com Isabel, mas a porta estava trancada, eu não era convidado do seu baile. Era o seu momento mãe e filha, e eu não podia atrapalhar. Deixei o corpo pesar e escorregar até o chão. À noite eu era sempre atormentado por sonhos que me atrapalhavam a dormir, acordando de hora em hora com vultos, e o frio que me assustava. O sono começava a se fazer notório no meu rosto e a se manifestar no meu corpo. Podia crer que adormeceria ali, com os murmúrios e a saudade que eu estava de Isabel.

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