quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

15- Final Feliz

Chegamos até as ruas, o ponto máximo onde se podia andar de carro. Isabel fez sinal para que eu estacionasse. Desceu do carro e quando viu que eu continuava parado, bateu no vidro da janela.

Era o que faltava, estava próximo do fim, do recomeço. O bloco passava à nossa frente e Isabel tinha pressa para seguir com ele. Pessoas cantavam, dançavam, lançavam suas serpentinas e confetes, eu me esqueci até da fome que tinha. Saí do carro pelo olhar insistente de Isabel, mas ainda me faltava a coragem e a certeza que ela tinha. Segurou minha mão e me arrastou até o meio da multidão carnavalesca, sua voz suave gritava a marchinha o mais alto que podia.
Era assim que terminaria a nossa missão, a nossa aventura, talvez a última delas e a mais importante. Em nossas vidas vazias, de adultos ocupados e quadrados, como todos os outros, algumas coisas haviam perdido o sentido para nós e queríamos mais que tudo recuperá-las. Fomos à casa, enfrentamos a perda, os vultos do nosso passado, a dor, as lembranças, mas entendemos enfim, o que nos faltava. Tínhamos perdido a magia, esquecido o que era de fato felicidade. Aquele grãozinho que se encontra nas coisas mais simples e que vem pequeno dentro de nós até tomar proporções infinitas. Até mesmo Isabel tinha apenas uma vaga lembrança desta sensação de ser feliz.
Depois de tudo que tínhamos feito, realizado, conversado, era só o que nos faltava depois de tanta teoria, o de fato, SER alegre. Isabel me abraçou com toda a força, com grande apego e carinho. Passaram-se anos desde que ficamos amigos, desde nossas brincadeiras de infância, mas nossos pactos de amizade infantis foram verídicos, estávamos juntos agora, como ficaríamos até o fim. Eu tinha aprendido a me desfazer de tanta coisa, de quase tudo que me fazia mal. Alguns medos e inseguranças ainda me acompanhavam, mas eu me sentia tão mais forte! Tinha conseguido consolidar o homem, sem perder o menino que cresceu tímido e sensível, entre as quatro paredes da casa de Isabel.
Uma tranquilidade repousava em mim, uma calmaria que não pensava que seria capaz de sentir. Era sempre tão atordoado por emoções negativas e agora eu não pensava mais na tristeza ou na solidão. O rosto de Isabel refletia a mesma paz. Recordei-me imediatamente do nosso último carnaval, e à todo segundo me vinha um deja vú.
A velha pergunta que fazia a Isabel, mesmo em silêncio. Se havia tempo para sermos felizes, já não me assolava, já me faltava a incerteza natural, característica da minha personalidade. Pensava nas lembranças com uma nostalgia carinhosa, mas enxergava além daquilo, podia ver os horizontes do futuro nos trazendo coisas boas. Começava a entender a importância da casa, de nossos dias lá dentro, daquele carnaval para nossas vidas. Terminamos nossas reflexões à tempo para pegar o último bloco. Isabel segurou minha mão e encostou em seu coração.
- Está sentindo?
Eu sentia, e meu coração tinha o mesmo ritmo que o dela. Não pensamos no dinheiro, não pensamos no mundo, nos problemas, nossas vidas não seriam mais vazias, estávamos salvos eternamente da mediocridade e isso era motivo o suficiente para os nossos sorrisos estampados e constantes.
Era o último dia de festa para os demais foliões, mas o nosso carnaval estava só começando...

14 - Adeus, Isabel

Adormeci no jardim como Isabel, tão realizado e pleno quanto ela. Acordei mais cedo e levei-a em meus braços para a cama (onde ainda estava), e a leveza que a noite passada havia me causado tinha ido embora, para dar lugar a uma sensação de nervosismo que me fazia percorrer inteiras a casa e a alma. Algo estava me perturbando mais que o normal, porém não conseguia definir o que era. Os efeitos do dia anterior, do sol e da calma, tinham de fato terminado, e tudo à minha volta me desagradava. Aquela casa, aquelas lembranças, tudo aquilo estava se tornando irritante. Alguma coisa percorria minha alma de um jeito incômodo. Doía em algum lugar, mas não sabia exatamente aonde. Machucava alguma coisa, mas não sabia de fato o quê. Precisava parar aquela sensação que me corroia. Se Isabel estivesse acordada, perguntaria a ela o que fazer, mas dormia ainda, como fazia sempre.

Já cruzava a sala pela terceira vez. Uma inquietude tinha tomado conta do meu jeito pacífico de sobreviver. A casa parecia mais leve, mais iluminada, achava até que o sol estava batendo mais forte na janela de Cecília. O mistério que ela era, estava longe de desaparecer, nunca se resolveria. Mas ficava na casa e na gente uma lembrança boa, como se o peso que sua presença carregava, tivesse ido embora com a chegada do sol, com o pedido de luz de Isabel. Ainda assim, algo estava insuportável para mim. Dei um soco na parede com toda a força que meus fracos músculos permitiam. Meus dedos sangravam, afinal, tinha batido com força, entretanto não me provocava efeito algum. A sensação de angústia conseguia doer mais. Pude compreender Cecília, neste instante de irritação. Angústia era a pior coisa que um ser humano podia sentir. Doía tanto, tanto, e eu não podia nem sequer dizer onde.
Tínhamos libertado as energias negativas de Cecília, tínhamos remexido em nossas emoções e lembranças. E agora? O que nos restava na casa? O que ainda tínhamos para fazer e por quê? Isabel não acordava, nada acontecia, nada me livrava da minha irritação. Se tínhamos feito o que era para ser feito, se tínhamos realizado nossos objetivos ali dentro, por que eu me sentia tão vazio, por que não me sentia bem?
Caí no sofá e a maciez que eu tanto gostava me irritou também, eu precisava sair dali. Saí da casa batendo portas e pisando forte, a perturbação cada vez mais presente, ia tomando conta de mim, controlando minhas ações. Entrei no carro, liguei o motor, olhei para casa. Não sabia se ia voltar... Só voltaria se algo me arrastasse da mesma forma que agora me expulsava. Olhei para a cortina do quarto de Isabel balançando.
- Adeus, Isabel.
Acelerei para descer depressa a ladeira. Procurei um CD, pois o silêncio estava me enlouquecendo. Não tinha. Mas eu queria tanto ocupar minha cabeça! O silêncio podia ser uma péssima companhia. A maior parte da minha vida era vivida em silêncio, entre minhas telas, na minha solidão habitual. Mas estes dias, tão próximos de Isabel, de lembranças, de uma companhia, talvez eu tivesse me desacostumado a estar só. O silêncio faz pensar, e nem sempre nos diz o que queremos ouvir. Talvez por isso as pessoas aumentem o volume da música, criem formas cada vez mais fortes de se alienar e nunca desliguem a televisão. Esqueci que estávamos no carnaval. Só me lembrei ao ver as pessoas fantasiadas e prontas em suas batucadas. Ah, Santa Teresa ficava impossível de carro durante o carnaval. Estacionei. A legião de foliões não se importava com meus trajes atípicos, era carnaval. Uma fada passou por mim e sorriu, algo nela me lembrou Isabel.
Nunca fui de bloco, queria apenas olhar as pessoas. Já me sentia mais tranquilo. Mas também com um frio na barriga de medo e de culpa, como uma criança que foge da escola para cabular aula. Sentei na calçada. Estava fora da casa, mas ainda não tinha nenhuma noção de tempo. Começava a ter fome, mas algo me prendia na calçada, era melhor que eu me concentrasse, pelo menos até acalmar meus ânimos.
As questões que me fizeram sair de casa, não tinham ido embora. Ainda martelavam em minha cabeça. Se já tínhamos feito tudo àquilo, por que eu não me sentia completo, o que me faltava?
Lembrei de uma tarde com Isabel em Itaipava, quando ela me disse que os objetivos não são para serem alcançados, mas para serem metas. Na hora não fez sentido para mim, mas agora começa a se encaixar. O que queremos de fato não é conseguir nossos objetivos, afinal, depois que os alcançamos, um vazio nos toma, não há nada mais a se fazer, e é hora de buscar uma nova meta. Mas a busca é profunda, a busca é o que nos move. Isabel tinha sempre razão, mas algumas coisas eu demorava mesmo a constatar.
Passavam pessoas fantasiadas, brilhando, cantando... Fingindo, claro! Isabel tinha me dito que não se tratava de fingir, mas de deixar fluir os outros lados escondidos de nossa personalidade e talvez fosse isso mesmo. Mas todos assumiam um personagem diferente e se aproveitavam de suas máscaras para realizar seus desejos ocultos, isso era bom. Sem consequências, todo aquele cortejo seguia seus instintos e vontades, e quando a quarta feira trouxesse as cinzas para os foliões, ficariam as lembranças, serpentinas e algumas canções. E para qualquer ato falho, ou atitude quase injustificável, a infalível sentença: "era Carnaval".
Sentia-me um pouco culpado, apesar do alívio de sair da casa. Eu tinha prometido não deixar Isabel sozinha. Mas era mesmo muita pretensão acreditar que ela precisava da minha companhia.
Algumas meninas passaram sorrindo para mim, esbanjando seu charme carnavalesco. Aquilo fez que algo dentro do meu peito se inchasse, me senti poderoso, entretanto poucos segundos depois minha insegurança fez-me pensar uma série de coisas. Elas estavam apenas sendo simpáticas, como ficam as pessoas no Carnaval, elas estavam me gozando, não rindo para mim, mas de mim. Sem dúvidas, era isso e nada mais.
Isabel ria quando contava a ela minhas desventuras amorosas, sempre foram desastrosas. Minha insegurança era sempre capaz de acabar com tudo, mas em todo caso, acho que nunca me apaixonei por ninguém de verdade e quando penso na palavra paixão, me lembro apenas da paixão platônica por Cecília.
Quando Isabel me apontava que alguma amiga dela estava afim de mim, eu logo dava um jeito de distorcer a menina e a história. Acreditava que havia algo de errado com a tal pretendente, ou que ela estava confundindo alguém comigo, e Isabel me olhava calada com aquele olhar de quem já ouviu a mesma história muitas vezes, até que desistia e deixava meus romances por minha conta.
Muitas pessoas me diziam que Isabel era apaixonada por mim, sobretudo quando éramos adolescentes, porém nunca consegui acreditar. Como Isabel poderia gostar de mim? E além do mais, eu era cego demais por Cecília para notar a flor que brilhava em Isabel, e que desabrochava esbanjando toda a beleza que hoje tinha atingido seu auge. Mas a paixão de Isabel, fictícia ou não, não a impediu de ter diversos namorados. Isabel gostava deles, até chorava de saudade quando eles iam para longe, mas nunca chorava por um fim (não na minha frente). Dizia sempre que assim ia ser melhor, que ela não podia se submeter a algo que lhe fazia mal, e logo estava feliz de novo. Era tão bem resolvida e isso só fazia crescer minha admiração, uma vez que eu demorava meses para sair de casa após o fim de um relacionamento, voltava atrás e pedia para voltar, fazia drama, lia poemas e chorava por horas a fio agarrado em lembranças. Eu era fraco demais. Fraco demais para me reerguer como Isabel, fraco demais para entender certos mistérios, e fraco o suficiente para abandonar Isabel por conta da minha inquietação.
O carnaval passava na minha frente e eu ali, alheio. Fiquei lembrando todos os meus anos de Carnaval, em casa, sozinho, recebendo Isabel para alimentá-la ou me contar as novidades de sua farra carnavalesca, que ela vivia a esmo. Fiquei imaginando Isabel passar por ali, pulando, sambando, sorrindo do jeito espontâneo que eu tanto adorava, ela sem dúvida, destacava-se no meio daquela multidão por ser a mais bonita e, sobretudo, a mais feliz.
Como em uma cognição, uma idéia me veio à cabeça e a irritação que me fez sair da casa tomava meu corpo, mas agora por outra razão, como se eu tivesse entendido o que nos faltava. Libertamos o peso da presença de Cecília, iluminamos a casa, remexemos em nossas lembranças, de como costumávamos ser, mas esquecemos do principal, de nós. Faltava sermos felizes. Saí da calçada atônito, precisava pegar o carro, encontrar Isabel, pedir desculpas pelo egoísmo, pelo abandono e dizer a ela o que enfim, eu tinha constatado.
Peguei o carro que demorou a engatar, conseguindo me irritar mais ainda, mas era uma irritação saudável, pois me movia, me arrastava para o que eu ainda tinha para concluir.
O caminho parecia mais longo que o normal, mas avistei logo a casa e a janela de Isabel, do mesmo jeito de quando saí. Abri a porta nervoso, subi as escadas, Isabel estava na sala, presa ao tecido, realizando com leveza mais um de seus voos. Eu estava apressado, como se precisasse agir imediatamente, mas ao entrar em casa e me deparar com a presença de Isabel, uma calma me tomou.
Ela levantou a cabeça, sorriu compreensiva para mim.
- Estava esperando você voltar.
- Isabel, me desculpe, eu estava nervoso, eu estava irritado, eu não entendia, eu não soube o que fazer, fui tão imaturo, insensato, egoísta...
Fez sinal para que eu me calasse.
- Estava esperando você voltar.
Repetiu a afirmação e os olhos amendoados me ofereceram colo e refúgio. Saiu do tecido com a leveza que lhe era habitual, segurou minha cabeça e encostou sua testa na minha delicadamente, beijou- me o rosto e me sorriu. Dos nossos olhos caíram lágrimas, não foi preciso nenhuma palavra. Isabel compreendia, perdoava e parecia que tinha tido a mesmo estalo que eu.
Entrou para o seu quarto e saiu vestida de Colombina, da mesma forma que chegou aqui. Eu obedeci ao ritual e vesti meu moletom velho e surrado. Queria levar tanta coisa dali comigo, mas Isabel me repreendia com os olhos toda vez que minhas mãos tentavam carregar algo. Era necessário que a casa ficasse intacta, da mesma forma, do mesmo jeito. Era como um refúgio dos nossos fantasmas, sentimentos, aflições, guardava com afeto quem éramos e quem havíamos deixado de ser. Guardava as festas de tia Inês, guardava as fantasias de Cecília, suas dores. Guardava a lembrança festiva de tio Vicente na volta de cada pescaria. Mantinha viva nossa infância, nossos dias, nossas aflições, nossos sonhos. Era o nosso santuário.
Os olhos de Isabel tinham um ar de dor pela partida, mas de realização. Olhou em volta de cada cômodo com carinho e com lágrimas nos olhos. Beijou a foto de tia Inês que ficava no quarto dela e a foto da família no escritório de tio Vicente. Depois olhou para mim, decisiva e pronta para sair. Fechamos a porta da casa e ela me sorriu alegre. Finalmente a sensação que eu procurava sentir começava a se manifestar dentro de mim, e acredito que dentro de Isabel também. Entramos no carro, olhando saudosos para casa e esperançosos para o que estava por vir.

13 - Para ver o sol

Ainda não acreditava que tinha adormecido ali, na porta do quarto de tia Inês. Não fazia idéia das horas, mas parecia ser madrugada ainda. Olhei de novo pelo buraco da fechadura, Isabel tinha adormecido. Estava deitada na cama de tia Inês e parecia ter pesadelos, pois se mexia à todo instante e tinha uma expressão assustada. Forcei a porta para abrir, num ímpeto de salvá-la de qualquer coisa ruim. Estava aberta, achei estranho, mas entrei. Talvez Isabel tivesse aberto para mim, deveria saber o quanto eu queria entrar. Ela ainda vestida e maquiada, dormia na cama e os cabelos negros fugiam ao coque, esparramando-se pelo lençol. Voltavam ao seu rosto as feições de menina.

Deitei-me ao seu lado, tomando o cuidado necessário para não acordá-la. Fiquei observando sua respiração, parecia ofegante. Ah, Isabel, não se desespere, eu pedia em silêncio esperançoso. Virou-se de frente para mim e segurou minha mão, acho que podia sentir minha presença.
Passou a mão nos cabelos, despenteando-os de vez. Das longas madeixas cheias, caíram em seu rosto dois cachos delicados. Enquanto observava o brilho dos seus cabelos, ela acordou abruptamente e me abraçou com a mesma força do abraço que me deu quando cheguei à casa. Senti pingar no meu ombro uma lágrima quente, Isabel chorava. Um choro sem soluço, mas profundo como uma enchente.
- Sonhei uma coisa, Téo. Sei onde Cecília está!
Sua voz estava cheia de certeza, mas eu estava perplexo.
- Ela não se encontrou, não está em um lugar bom. Lá só tem pessoas tristes como ela, pesadelos e medos. Ela ainda precisa de luz, de muita luz.
Saiu do meu abraço e foi até a janela do quarto de tia Inês, que nunca tinha sido aberta, se minha memória não falhava. Fez força contra a ferrugem e a poeira e escancarou a janela.
Ainda era noite, mas o sol dava os primeiros sinais da sua presença.
- O sol quer nascer, vamos deixá-lo entrar.
Arrancou dos pés as sandálias altas e segurando o longo vestido de gala, saiu do quarto. Atravessou o corredor com rapidez, como se tivesse pressa de agir. Entrou no escritório e abriu as janelas com força, correu até a biblioteca, a sala, a cozinha, o seu quarto e fez o mesmo movimento apressado e urgente em todos os cômodos.
Parou então em frente à escada de Cecília. Respirou fundo, segurou com mais força a barra do vestido e subiu pisando forte. Ao entrar no quarto, lágrimas escorreram dos seus olhos instantaneamente, mas parecia corajosa e plena. Olhava em volta com um sorriso terno, com carinho pela irmã que estava longe e perceptivelmente saudosa de sua presença fria. Abriu as janelas do quarto de Cecília, como em um ritual, que lhe dava paz.
- Agora vem!
Puxou-me pelo braço até o jardim, seguindo até o roseiral, chegando ao ponto mais alto, estendeu os braços para o céu.
- É disso que precisamos. Eu, você e Cecília.
Pela primeira vez tinha dito o nome da irmã sem respirar fundo antes. Parecia que tinha se libertado do medo de pronunciar o nome dela.
- Você não quer dormir, Isabel?
Parecia bastante sonolenta.
- E perder a chegada do sol?
Estava encantada, como se assistisse ao maior dos espetáculos e falava de ver o nascer do sol, como algo óbvio. E talvez para ela fosse.
Isabel sentou-se na grama, sem medo de sujar o vestido. Seus cabelos bagunçados estavam mais lindos que nunca, e a expressão de realização brilhando em seu rosto.
Eu estava distraído com ela e com tudo a nossa volta. Isabel me deu um beslicão forte no braço.
- Preste atenção!
Ordenou séria.
Isabel parecia exausta, mas como estava linda! Fiquei olhando a cena de fora, prática que me era tão comum, principalmente com ela, que era sempre uma bela paisagem. Isabel saíra do seu baile de gala, despenteada, a maquiagem dos olhos borrando, entre as flores, deitada na grama. Era como um poema. Os primeiros raios de sol brilhando em seu vestido de cetim e em seu rosto as expressões perfeitas. Quis pintar aquela cena, quis Isabel em minha tela. Fiquei imaginando suas cores e seu brilho refletido em minhas tintas. O sol apresentava um belo espetáculo. Fazia-se presente e hipnótico em sua aparição, mas eu queria observá-lo refletido nos olhos de Isabel. Era ainda mais bonito.
Esparramou-se na grama, com os braços abertos. Virou o rosto delicado para mim e me permitiu um sorriso cheio de plenitude e realização. Encostou o queixo no braço de pele macia e branquinha.
- Agora posso dormir.
Fechou os olhos de imediato, como se estivesse todo o tempo pronta, esperando o momento certo para adormecer. Mas eu não era como Isabel e começava a sentir a insônia presente em mim. Corri até a casa para buscar algo para desenhar, com receio de deixar Isabel lá, sozinha. Não havia trazido nada para desenhar, tinha até me esquecido desse prazer, às vezes me ocorria isso.
Isabel costumava dizer que precisava atuar, necessitava tanto quanto respirar, para que não se sentisse sufocada. Achava bonito o jeito que ela falava das coisas que gostava, eu nunca fui assim.
A vida era mesmo injusta... Isabel se sentindo sufocada por não poder atuar, servindo pipocas e sorrisos no Cine Santa. Seu sonho era o cinema, e ironicamente, foi o que ela conseguiu.
Depois que Isabel e Cecília cresceram e saíram de casa, tia Inês voltou à Arraial do Cabo, para levar uma vida pacata, e Isabel teve que trabalhar muito para se manter, abandonando seu antigo sonho de ser atriz. Eu terminei a escola e fiquei de papo pro ar, para só dois anos depois ingressar na faculdade de belas artes, e minha vida tem sido a base da herança que me foi deixada, pintando, vendendo um ou outro quadro. Mas, no entanto, Isabel parece mais feliz, nunca entendi.
Não tinha papel, não tinha lápis, não tinha nada que escrevesse na casa. Lembrei-me dos diários de Cecília. Havia algumas folhas em branco. Arranquei-as com cuidado e corri até a sala para pegar próximo à lareira, carvão. Era o que me restava, e a vontade de desenhar me tomava o corpo inteiro e nada mais dividia espaço com esse desejo em minha cabeça.
Corri até onde estava Isabel, o desenho se construiu sem esforço, minha mão era empurrada por um impulso maior, em poucos minutos estava pronto. Ainda faltavam cores, ainda faltava o perfume, das flores e de Isabel. Mas suas formas descansadas estavam lá, no papel amarelado e sentido dos diários de Cecília.
Estava lá seu cabelo bonito, suas mãos delicadas e todo o meu apresso por ela.

12 - Buraco da fechadura

Isabel tinha surtos de vaidade, e me deixava sozinho para ir ao quarto de tia Inês no fim das tardes para ficar provando todos os vestidos, sapatos, se maquiando na penteadeira por horas a fio. Só saía de lá à noite, toda bonita e perfumada. Quando saía do quarto, ficava um tempão andando pela sala ouvindo o sapato alto fazer barulho no piso de madeira e rindo como uma criança.
Tia Inês não deixava Isabel usar sapato alto, nem maquiagem, talvez por conta disso, mesmo com o passar dos anos, manteve um jeito leve ao se arrumar. Não precisava de nada disso, nem combinava. Era linda ao natural. Mas era engraçado ver Isabel realizar seu desejo infantil de ser vaidosa e produzida como tia Inês.
Ainda fazia frio. A chuva cessava durante o dia para dar espaço a um sol fraquinho, mas que animava Isabel, e então à noite voltava a cair o temporal e baixava consideravelmente a temperatura. Isabel me deixava sozinho e eu ficava em frente a lareira pensando naquilo tudo. Nós dois naquela casa, conflitando com o que havia dentro de nós. Tantas coisas que eu nem ousava antes disso questionar ou descobrir, mas que eram inevitáveis agora com Isabel e todas as nossas lembranças.
Quanto tempo mais ficaríamos ali? Perguntei-me enquanto observava o fogo da lareira.
Isabel era minha bailarina na caixinha de música, que eu observava e seguia hipnotizado. Gostava de assisti-la em suas necessidades, fossem do corpo ou da alma, pois só sua presença já me fazia bem. Minha vida era monótona e vazia. De certa forma, aqueles dias tinham me devolvido o brilho ingênuo da juventude. Juventude que eu podia constatar em minha identidade, mas que há muito tempo não sentia em minha alma. Era Isabel, meu pequenino e profundo raio de sol. Olhar aquela sala vazia fazia eu me lembrar de anos atrás, da presença de Cecília.
Quando eu e Isabel estávamos apenas começando a nos interessar pelo mundo à nossa volta fora dos limites da casa, de nossas brincadeiras, era Cecília quem observávamos. Ela parecia tão parte desse mundo novo que se abria para nós, como uma porta. Ela sim existia. Digo existir na essência filosófica da palavra. Ela se lançava para fora (pelo menos era o que achávamos), para além do mundo fechado em que eu e Isabel nos condicionávamos. E nós queríamos tanto gozar dessa existência.
Talvez Isabel não visse Cecília assim, não tomasse da sua vida uma janela para o desconhecido. Ou talvez tomasse, mas não se contentasse em apenas observar a vista da sacada através de Cecília, como eu. Li uma vez que a ciência havia comprovado que as mulheres sentem as coisas diferentes dos homens. Engraçado. Queria ver provarem que alguém sente igual à outra pessoa. Imaginei como seria se Isabel sentisse como eu. Como seria a vida sem nossos debates, sem a poesia no olhar de Isabel para o mundo que tanto me encantava.
De fato, eu gostava muito da diversidade dos pontos de vista. Satisfeito com minhas conclusões, desejei Isabel ao meu lado e seus olhos brilhantes, sedentos de saber e de vivência. Caminhei pelo corredor escuro a caminho do quarto de tia Inês. Ouvi a voz doce de Isabel desafinando lindo em uma marchinha de carnaval. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Minha vontade de vê-la era tanta, que não resisti às grandes fechaduras. Quando pequenos ficávamos olhando tia Inês embrulhar os presentes de Natal, para ver o que cada um ia ganhar.
Da fechadura via apenas a cama empoeirada de tia Inês e os pedacinhos de Isabel, que a breve abertura me permitia. Vi seus cabelos ondulados fazerem volume, balançando enquanto amarrava-os em um coque bem preso. Observei as mãos finas prenderem seu cabelo em um laço de fita sedoso.
Isabel levantou-se da penteadeira ainda batendo com leveza em seu rosto a maquiagem, que corava ainda mais suas bochechas, naturalmente rosadas. Levantou-se e pude ver que o corpo bem feito estava coberto por um vestido de gala de tia Inês, que ela só usava em casamentos, bodas e outras festas importantes. Era um vestido dourado, que os anos haviam deixado cor de bronze e ainda mais bonito pela nostalgia. O espartilho desenhava as curvas de Isabel e deixava seu colo à amostra. Moveu os braços em um gesto delicado e borrifou perfume em si. As mãos pareciam mais finas e alongadas e um anel de brilhantes solando em seu dedo médio. Uma expressão sedutora e séria entregava ao rosto de Isabel os anos que esquecia de refletir, pelo sorriso de menina que mantinha. Isabel era uma mulher, uma linda mulher. Como eu podia ter demorado tanto para perceber? Murmurava quase em silêncio uma canção triste agora, enquanto se olhava no espelho, se admirando, notando suas semelhanças com tia Inês. Brincando de ser a mãe, talvez. Só agora eu sabia reconhecer que mesmo com todas as suas falhas, tia Inês era uma mulher fantástica. Perdeu cedo o marido e teve que trabalhar para manter a casa e as filhas, sofrendo todo o tipo de dificuldade pelo preconceito irritante com as mulheres solteiras ou com a falta de experiência. Foi uma mãe ausente, não porque quis, mas porque não pôde estar mais perto.
Com o passar dos anos e principalmente após a conversa com Isabel, pensava nela com uma enorme admiração, e nos últimos dias com certo dó, ao imaginá-la recebendo a notícia da morte de Cecília.
Queria estar com Isabel, mas a porta estava trancada, eu não era convidado do seu baile. Era o seu momento mãe e filha, e eu não podia atrapalhar. Deixei o corpo pesar e escorregar até o chão. À noite eu era sempre atormentado por sonhos que me atrapalhavam a dormir, acordando de hora em hora com vultos, e o frio que me assustava. O sono começava a se fazer notório no meu rosto e a se manifestar no meu corpo. Podia crer que adormeceria ali, com os murmúrios e a saudade que eu estava de Isabel.

sábado, 28 de novembro de 2009

11- Desenho das nuvens

Isabel me pôs no chão após alguns minutos e voos. Logo depois, ficou em pé ao meu lado, descabelada, com as faces mais coradas que o normal e uma expressão de quem ainda tinha perguntas.
Essa expressão lhe era muito comum, nada lhe satisfazia por muito tempo. Logo arranjava novas perguntas, curiosidades. Queria entender tudo, sentir, questionar. Fomos até a varanda olhar o céu, Isabel apontava sorridente o desenho das nuvens.
Notei a inquietação percorrer o corpo dela. Reparei nos pés batendo em movimento contínuo e ritmado, depois as penas que balançavam em uma quase coreografia, as mãos passeavam pelas pernas, o cabelo, o rosto, o vestido e de novo apontavam mais nuvens. Ela pensava em algo.
Eu tinha certeza que viria mais alguma de suas perguntas e que eu não saberia responder, porque Isabel sempre me fazia cogitar questões que eu desconhecia. Em sua transparência e seu mistério, parecia bem resolvida consigo mesma. Falava, expunha, e até mesmo as ideias que ela guardava só para ela, dentro dos olhinhos miúdos, eram muito bem ruminadas.  Eu sufocava as emoções dentro de mim, fingia que não existiam, e assim fui criando uma enorme bola de neve de sentimentos, que ao longo dos anos me somou uma gastrite, que de vez em quando me ataca e me restringe muito a alimentação.
A inquietação que dançava no corpo e na mente de Isabel, se fez presente dos seus olhos quase castanhos que me olharam ansiosos, pedindo uma explicação.
- O que te aflige, Isabel?
- Estou confusa
O silêncio entre nós durou o tempo de uma pulsação até Isabel retomar o que dizia.
- Cometi tantas injustiças. Como fui má, Téo! Tantos julgamentos errados, egoísmos, mágoas tolas e infantis de criança mimada.
Falava com certo desprezo e parecia esquecer que falava de si mesma. Como se fizesse menção a uma outra pessoa.
- Você tem mágoas, Téo?
- Não.
Menti depressa.
As conversas com Isabel sobre os seus sentimentos acabavam sempre me afetando muito. Ela me fazia refletir, lembrar  e notar que o tempo todo aqueles sentimentos residiam em mim, compondo minha bola de neve emocional.
- Já sentiu remorso por ter agido injustamente com alguém?
Estava aflita e minha resposta parecia ser capaz de livrá-la um pouco de tal inquietação que se manifestava nos olhinhos nervosos.
- Não.
Menti de novo.
Não aliviei o fardo de Isabel de novo pela minha covardia. Os maiores defeitos (que só agora eu conseguia ver, rompendo a imagem de perfeição que fiz dela) e virtudes de Isabel, eram proveninentes de uma só caracteristica: Era humana demais.
Humana para sentir, para se afeiçoar, para gostar depressa e com todo o coração, para se entregar, para fazer pelo outro, para perdoar. A partir disso, construiu o que eu mais admirava nela. Sua consciência social, seu olhar poético, sua doçura, o calor da sua presença. Entretanto, era sujeita demais aos erros, às fraquezas. Era marionete de sua sensibilidade, que lhe causava aquele sorriso puro e essa habitual inquietação.
- Tive tantas falhas com a minha mãe.
A imagem de Tia Inês me veio mais forte à cabeça.
- Tive tanta raiva por sua desatenção, por sua ausência, por ter sido relapsa e distante nos momentos em que eu mais precisei. Por não ter dado atenção ao meu desejo de ser atriz, por nunca ter me arrumado para uma festa, até por nunca ter pegado no pé, me controlar, como as outras mães faziam. Penso em todos os perigos aos quais fiquei sujeita, tantas situações em que fiquei exposta sem necessidade. Aprendi à duras penas que a vida maltrata quem não tem defesa. Eu esperava que aquela pobre mulher, mergulhada tanto quanto eu em abandonos, fosse minha armadura e não notei que ela fez o que podia.
Suspirou fundo e uma lágrima grossa escorreu pelo rosto.
Senti minha gastrite se manifestar, notei que minhas emoções começavam a mostrar que não tinham ido embora.
- Mas nessa casa tenho menos medo, sabe? Sinto que aqui dentro é possível retomar, consertar, reconstruir esses pedaços de mim.
Parecia confiante e destemida, como há muito tempo já provara que era.
Eu quis chorar também. Queria ter a mesma certeza que Isabel de que a retomada dos meus pedaços perdidos também era possível, pelo menos dentro da casa. Quis ter a mesma força, o mesmo coração corajoso.
Isabel abriu os braços pedindo meu afago. Nosso abraço servia muito mais para mim do que para ela, que não fazia ideia do bem que me causava, só sendo ela mesma.
Notei que a tarde se despedia de nós aos poucos, Isabel olhava fixa para o corredor, para o quarto de Tia Inês. Sentei-me no sofá enquanto Isabel passou por mim e atravessou o corredor. Senti as manifestações dolorosas da minha gastrite, mas senti também que se tornava menor a bola de neve que entravava o meu caminho. Por Isabel, pela casa.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

10- Acrobacia Aérea

Ao sair da cozinha, Isabel  se pendurou no tecido que ficava preso ao teto da sala. Estava empoeirado e sujo, mas ela parecia pouco se importar. Saltou abruptamente do chão para o tecido, mas fez com tal leveza, que eu demorei alguns segundos para notar que Isabel não estava ao meu lado mas acima de mim.
Lembro bem do esforço de Isabel para convencer Tia Inês a deixá-la participar das aulas de circo e pendurar no teto aquele tecido, contrariando toda a decoração harmônica de sua sala.
Sentei no sofá largo e confortável e percebi no ar a poeira que subia. Fiquei observando Isabel se enrolar no tecido, cada vez mais alto.
- Téo, lembra quando eu disse que queria ser um passarinho?
De novo essa história? Isabel tinha umas manias esquisitas, será que andava esquecendo o que falava? Deixei para lá o que eu pensava das manias dela.
- Lembro, Bel.
O tecido despencou do alto do teto, Isabel  se prendia a ele não sei de que forma, e se desenrolava em um movimento delicado, indo de um lado para o outro, descendo até onde eu estava, quase um voo.
- Essa foi a minha solução.
Sorriu docemente. Os cabelos cobrindo todo o rosto, me deixando ver apenas o sorriso, mas eu imaginava o resto. Os olhinhos que ficavam mais miúdos quando sorria, as bochechas salientes e a expressão serena. Tornou a subir, escalando com leveza até o ponto mais alto. Parecia concentrada, e os cabelos negros e ondulados esbanjando comprimento e maciez.
- Só me sinto livre aqui em cima.
Exclamou Isabel e sua voz fez eco pela sala.
- Tanto tempo sem me recordar o que era liberdade!
Isabel era estranha mesmo.
Saiu de casa cedo, sempre mandou na própria vida, viajou para onde quis, chegou em casa sempre à hora que bem entendeu. Como poderia ter liberdade presa e um mero pedaço de pano e não em uma vida inteira seguindo apenas as suas vontades, por mais insensatas que às vezes elas fossem? Talvez Isabel fosse complexa demais para a minha cabeça limitada. Eu pensando tolices à respeito de assuntos que ela parecia dominar...
- Você é livre, Téo?
Se balançava no alto, indo de um lado para o outro. Será que Isabel se questionava à todo instante à respeito das coisas que me perguntava? Algumas coisas eu simplesmente ignorava. Não procurava entender por medo da dor, e tal medo me tornava vazio. Exatamente o que me diferenciava de Isabel. Ela não tinha medo de remexer dentro de si, se descobrir, despencar no ar.
- Não sei.
Respondi secamente.
- Acho que sim.
Completei ainda seco.
- Nada te prende?
Perguntou surpresa em mais uma queda livre do tecido até meu rosto.
Não tenho pais, não casei, nem tive filhos. Não tenho namorada, nem emprego. Nunca fiz empréstimo e sempre andei na lei.
- Nada.
Estava confiante.
Isabel continuava presa ao tecido, mas agora com o rosto muito próximo de mim, exibindo expressões que eu desconhecia, de curiosidade e espanto.
- Pode fazer o que quiser? Qualquer coisa?
Não sabia. Podia?
- Téo, não confunda ser livre com não dever satisfações, vai muito além.
Fiquei ainda mais confuso. Ela parecia compreender tudo que eu pensava, entrar dentro de mim, algumas vezes. Tentou ficar mais confortável e na altura do meu corpo, ainda presa ao tecido.
- Existem algumas prisões que partem de nós mesmos. Como medos, insegurança, vergonha, comodismo, pessimismo...Eu nunca estou livre. Essas prisões não me deixam voar alto, me impedindo de ser passarinho. Nada te empurra para baixo?
Seus olhos quase castanhos se fixaram nos meus, procurando uma resposta. Isabel mais uma vez estava certa. Além da lei natural da gravidade, eu tinha muitas daquelas prisões me empurrando para baixo. Tantos medos! Uma vergonha enorme de ser quem eu era, a insegurança de crer que eu nunca seria o suficiente, e aquela tristeza que havia se instalado, e que era meu maior impecilho.
Uma lágrima escorreu dos meus olhos sem esforço. Estava tão preso o tempo todo sem me dar conta.
- Estou algemado, Isabel.
Seu rosto tinha agora uma expressão sensata e amiga, me era confortável, me salvava sempre. Ah, meu doce refúgio Isabel. Não disse nada, não foi preciso.
Presa ao tecido pelas pernas, me estendeu a mão delicada e macia.
- Venha voar comigo, Téo.

domingo, 22 de novembro de 2009

9- Relógio

Entramos em casa abraçados, ainda cheirando a rosas. Eu segurando Isabel de costas, pela cintura, sentindo o cheiro do seu pescoço. O cheiro que amadureceu com ela, mas que não perdeu a essência.
Isabel era tão branquinha, tão cheirosa, tão encantadora! Uma melodia sublime da qual eu jamais cansava.
Olhamos o relógio na parede da cozinha. O tempo literalmente tinha parado para nós. Isabel suspirou profundamente e encheu duas canecas com chá de erva doce.
- Eu tenho tantas saudades, Téo. Essa época de carnaval me deixa saudosa demais, lembrando de tudo que já vivi. Tantos anos desde que saí dessa casa, tanto tempo! Onde estávamos, o que fizemos?
Isabel tinha razão. Eu não sabia, não tinha feito nada. Outro dia éramos crianças, tomando chá naquelas cadeiras para proteger nossos corpos do frio. Agora, éramos as mesmas crianças, com algumas vivências, tomando o mesmo chá, na mesma cadeira para proteger a alma. Não amadurecemos...
Para acalmar nossas dores, manipulávamos o tempo naquela casa sem hora.
- Do que você sente falta, Bel?
Criei uma imagem de Isabel como uma semideusa e acreditava na minha invenção. Achava que ela era diferente de mim, que sua perfeição não alcançava minhas fraquezas de humano. Meus desejos da carne, minhas carências, medos. Para mim, Isabel não sentia nada disso. Mas eu me enganava mais uma vez. Isabel era mulher, humana, tão frágil quanto eu. Sujeita a tudo que eu estava e precisava tanto de mim quanto eu dela.
Isabel começou a chorar na minha frente. Vi dos seus olhos, caírem lágrimas grossas que pingavam no chá. Os olhos amendoados encharcados, Isabel estava toda mergulhada em lágrimas e faltas.
-Sinto falta de Cecília, Téo. Mesmo longe ela se fazia presente nas cartas que mandava e dentro de mim, alimentava a esperança de que ela voltaria. Agora sei que não está aqui e que não voltará nunca mais.
Segurou minha mão e fixou-a em seu peito.
- Sentes, Téo? Sentes a minha dor? É fisica essa queimação dentro de mim, sinto doer bem aqui.
Indicou com a mão onde doía.
Queria sentir a queimação de Isabel, queria tirar a dor que ela sentia. Como eu queria aplacar, pelo menos um pouco, a falta de Cecília dentro dela.
Abraçou-me com vontade de desabar. Senti-a tão fraca que achei que fosse desmaiar em meus braços.
- Não me deixe, Téo. Não me deixe nunca.
Eu não deixaria, por nada.
- Eu te pergunto agora, Téo. Ainda há tempo para sermos felizes?
Toda a vida fui frágil e pessimista, pendurava na força que Isabel tinha para desacreditar na vida. Mas quando ela precisava de mim, uma força estranha crescia, me fazia acreditar que tudo ia ficar bem, que ainda havia tempo. Não sabia como, mas me vinha segurança. Para deixar Isabel feliz, eu seria capaz de qualquer coisa. Inclusive brigar comigo mesmo, romper convicções aparentemente concretas e imutáveis. Era o que eu fazia agora.
- Enquanto houver carnaval e estivermos juntos, sempre haverá tempo.
Secou as lágrimas e me pareceu honestamente mais aliviada. O que me trouxe um orgulho bom, de fazer bem a Isabel, pelo menos uma vez.

Ao sairmos da cozinha, olhei de novo para o relógio na parede. Continuava parado.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

8 - Eu te amo

Isabel chegou toda suja de terra do roseiral, com os cabelos cheios embaraçados e uma flor, presa a orelha. Atirei os diários de Cecília de volta para baixo da cama e fiquei preocupado que Isabel percebesse, pois fez barulho. Mas ela estava tão envolvida por seu entusiasmo, que nem notou.
- Venha ver o roseiral, como está lindo!
Estendeu a mão suja de terra para mim.
Guiou-me gentilmente até o jardim, subindo para o roseiral. Vendou-me com as mãos sujas e só parou com a brincadeira depois de me aborrecer.
Como as flores estavam bonitas! Fazia tanto tempo que Isabel não se dedicava à jardinagem, que eu até tinha esquecido que ela gostava disso.
Rosas brancas, amarelas, vermelhas, cor-de-rosa, chá. Dei a mão à Isabel e passeamos juntos pela imensidão florida.
Era a minha vez de fazer perguntas. Ler o diário de Cecília tinha me deixado cheio de questões e Isabel era minha principal fonte de respostas.
- Do que você tem medo, Bel?
Olhou para cima pensando na resposta. Isabel, diferente de mim, pensava muito bem no que ia dizer.
- De ficar sozinha. Perdi meu pai e minha irmã.Perdi minha mãe também, não por morte, mas pelos danos irrecuperáveis da distância e do tempo. Agora só me resta você e à todo instante acho que vou perdê-lo.
Toda a minha vida tive medo de ficar sem Isabel, pois foi sempre rodeada de muito amigos. Isabel era para mim, a pessoa mais corajosa do mundo. Não imaginava que ela temia algo, principalmente a solidão.
Tornei a pensar nos diários de Cecília. Tinham me despertado um turbilhão de emoções e dúvidas.
- Você ama, Isabel?
Foi difícil perguntar. A voz saiu pesada, com ar de confissão culpada. Acho o amor tão difícil de falar e questionar, achava que Isabel também pensava assim. De todos os sentimentos, ela tinha uma experiência para compartilhar, pois foi dotada de uma sensibilidade inexplicável, mas sobre amor... Nunca disse nada, nem sequer, que sentia.
- Mas é claro que amo.
Respondeu sem esforço, sem pensar. Parecia óbvio para ela.
- Como sabe que ama?
Isabe sabia de tudo, sobre todas as coisas. Devia saber isso também.
- Algumas coisas lançam a semente do amor dentro de nós. Como convivência, admiração. E outras coisas cultivam essas sementes, como carinho, companheirismo. E logo sentimos brotar aquela flor, que cresce e fica mais viçosa e bonita. Mas é preciso cultivá-la. Precisa de cuidados e atenção, como todas as flores. Senão murcha, e vira uma rosa seca dentro do coração.
Pareceu pensativa, será que ela tinha uma rosa seca dentro de si?
- Devemos dizer quando amamos?
Isabel escondia-se entre as rosas. Havia algo nela da mulher de batom vermelho da noite passada e havia também algo da menina que eu conheci. As duas se fundiam, e como era boa aquela junção!
- O amor não é um discurso, Téo. Não consiste em dizer que ama, mas em ações de amor. Amor é vivência, compartilhar. Andar por um jardim bonito, falando sobre os seus sentimentos, por exemplo.
Piscou os olhinhos amendoados e esses riram para mim cheios de carinho. Ela não disse nada, mas eu entendi. Arranquei uma rosa branca que estava perto de mim, estendi a Isabel. A flor do meu amor se fez presente, notei que à todo instante estava lá.
Eu te amo, Isabel. Pensei e senti.

7 - Os diários de Cecília

Isabel saiu cedo para cuidar do jardim. Eu ainda dormia e ela me deixou um bilhete dizendo que estava cuidando das rosas, e que eu não fosse atrás dela.
Obedeci como o bom cumpridor de ordens que sou e depois de me fartar com o café da manhã que ela deixou na mesa da cozinha para mim, aproveitei para olhar os diários de Cecília que escondi em baixo da cama.
Ainda me dava certo pânico ler aquilo, porque Cecília não deixava de ser mistério. Ler seus escritos era entrar no desconhecido e o novo me assusta.
Peguei um dos cadernos e abri em uma página aleatória.
"Fiz treze anos hoje e meu pai não está mais aqui. Foi um dia triste, como todos os outros. Mamãe tentou me alegrar com uma festa , mas os convidados tristes, um parabéns desanimado, as pessoas frias. Tentavam me passar alegria por mais um ano de vida, mas dentro dos seus pensamentos me desejavam pêsames pela morte do meu pai. Somente Isabel e seu amigo Téo chegaram perto de me alegrar. Pois mesmo diante da confusão que está nossa casa e nossa vida, corriam pelos cantos como se nada os importunasse. Meu pai deixou uma carta, acho que sabia que não resistiria até essa data. Na carta, ele diz que meu presente é a biblioteca, que ela é toda minha. Que posso ficar nela lendo, pensando, o quanto eu quiser. Sempre quis a biblioteca para mim, então por que não me alegro? Não sei...
Há uma barreira em mim, bloqueando a entrada da luz, da alegria."

Continuei a folhear o diário, procurando mais coisas. A tão conhecida carga de adrenalina sobre mim.

"Acho que estou amando. Coisa forte para dizer, eu sei. Mas só pode ser amor essa coisa que deixa meus dias um pouco mais coloridos, que me faz deitar no jardim sob o sol, apreciando o desenho das nuvens e sorrir de forma menos vazia e um pouco mais sincera. Tenho menos dor, me embriago menos,pois quero curtir lúcida cada momento vívido dessa paixão que reserva inocência. Sei que o amor é um mistério profundo da vida, por isso não quero entende-lo, quero apenas senti-lo palpitando dentro do meu coração."

Ao fechar a página me lembrei que Cecília tinha um namorado. E que durante seu namoro, os cuidados com ela eram menos rigorosos, pois costumava ter hábitos mais leves. Recordei de observá-la namorando no portão. Aquilo me causava tanto ciúme e tanta inveja, pois eu imaginava que aquele garoto devia saber tudo sobre Cecília, e eu queria conhecê-la tanto quanto ele. Ver Cecília apaixonada por ele e não por mim me causava despeito e eu desejava que ele morresse, às vezes. Como Cecília podia gostar de mim se eu era só um garotinho que brincava com a sua irmã mais nova? Recordei também a primeira vez que senti culpa.
Tanto eu desejava que o namorado de Cecília morresse e um dia soube que ele estava muito doente, com um tumor na cabeça. Em poucos meses faleceu, e Cecília nunca mais sorriu da mesma forma.
Fiquei imaginando porque a vida de alguém é feita de tantos desgostos. Será que algumas pessoas eram destinadas à infelicidade? Como podia? Há de fato o destino por trás dos acontecimentos ou nós temos livre arbítrio em nossas vidas?
De volta ao diário.
"Ultimamente tenho medo de tudo. É um pânico que me persegue. Medo de sair de casa, de entrar em casa, do dia, da noite, da chuva, de olhar para o céu. Tantas perdas a vida já me trouxe e pouco ainda tenho para perder, pois tudo já me foi levado, inclusive a esperança de ser feliz. Mas ainda assim, talvez por um mecanismo de defesa inconsciente, tenho medo. E as pessoas parecem ter medo de mim. Quando vou ao jardim, Isabel e Téo vão para a sala, e se chego na sala, voltam para o quintal. Ouvi mamãe dizendo à Isabel que não me incomodasse, que eu gostava de estar sozinha. Ora, quase ri. Quem é que gosta da solidão? Mas as pessoas estão tão preocupadas em não me desagradar, que se esquecem de me conhecer."
Fazia tanto sentido agora. Todos os olhares, as atitudes. Abracei o papel imaginando que dava a Cecília o abraço que nunca pude e que ela tanto merecia e precisava. Seria que Isabel demoraria para chegar? Confiei que sim e abri outro diário.
"O que é a morte? Fico pensando para onde as pessoas vão depois que morrem. Acho que ficam zanzando pela terra, nos condenando a sua presença fria. Sim, são eles. São eles que me fazem companhia nas noites mais frias, nos verões mais quentes, todos os dias, quase sempre eles estão aqui. Às vezes demoram, às vezes só passam, às vezes me tocam, às vezes só falam, às vezes sussurram, às vezes gritam. Às vezes sei o que querem, quase nunca consigo lhes dar. Alguns desistem, somem, outros persistem, voltam mais tarde. Outros revoltam, bagunçam as coisas, se machucam, me desesperam.
Sinto seus toques indolores, sua presença invisível. Fecho os olhos mas não os vejo com eles, e sim com a alma, e essa não posso proteger de tal presença. Se eles vêm por bem, por mal, por vir? Não sei. Desconheço suas vontades, tenho medo, não sei se é verdade. Confundo real e fantasia, vida e morte e me pergunto se é insanidade. Será?
Me belisco, tento ver de novo. Queria ter certeza de que é só a cortina balançando por causa do vento ou que as vozes que ouço são sonhos que tenho acordada, mas não consigo crer em nada.
Assumem as formas para me apavorar, para me confortar e estão perto de mim quando me sinto mais sozinha. Se alimentam da minha vontade, disposição, alegria e eu tomo as dores deles, sem querer. Não sei quem são, de onde surgem, o que querem, mas mesmo quando não se manifestam, sei que estão presentes e que andam comigo... sempre!
Ninguém mais se aproxima de mim, fico só eu e eles nessa necessidade de encontro, nessa falta de luz, de vida. Creio que estou tão morta quanto eles... Ou mais. "

Os sentimentos de Cecília estavam sendo passados para mim. Quem eram esses que lhe faziam companhia? Seriam presenças espirituais, insanidade, fantasia, fastasmas criados pela sua própria solidão? Apavorado, abri outra página.

"Não aguento mais! Já arrumei minhas coisas e agora preciso ir embora. Há muito tempo planejo essa viagem sem volta, mas sem coragem de dizer à minha mãe e de deixar Isabel aqui. Não temos muito contato devido à bolha que se forma ao meu redor, mas a amo. Pois a vi nascer e os momentos menos infelizes da minha vida foram devido a ela e a sua alegria. Porém estou sufocada e preciso correr o mundo, preciso aliviar um pouco desse peso. A angústia dói mais por não ser palpável. É quase física, pois sinto as pontadas dentro de mim, mas não consigo dizer onde dói e o que. Mas essa angústia me corrói à cada dia, e a vida vai virando apenas uma luta contra esse sentimento e essa sensação de vazio. Estou criando coragem para descer e dizer tudo o que quero. Estou me despedindo desse quarto, dessa casa, dessa vida vida. Preciso me encontrar. Onde será que eu estou? "

Ali terminavam suas anotações. Será que ela escreveu durante a viagem? O que se passava em sua cabeça quando voltou à casa, quando ligou para Isabel?

Cecília começava a ser decodificada. Criamos uma imagem diferente dela. De alguém distante que não precisava e nem queria de ninguém por perto. Quando na verdade, era uma menina sofrida e só, que precisava se deixar ser amada.

domingo, 18 de outubro de 2009

6- Batom vermelho

Isabel me deixou na sala esperando, disse que tinha uma surpresa. Já fazia muito tempo que eu estava no sofá, olhando para o nada, esperando Isabel chegar com a tal surpresa. Quer dizer, não sabia se era muito tempo. Não tinha relógio, não tinha noção. Mas aquela espera ansiosa dava a impressão de cerca de quarenta minutos.
A tarde se despedia, de fora da janela. O mundo rodava fora das paredes, mas dentro da casa, da sala, tudo permanecia estático.
Isabel falou alto de dentro do quarto.
- Téo, feche os olhos.
Obedeci. O que será que ela queria?
- Pode abrir.
A voz soou mais próxima de mim.
Abri os olhos e estava Isabel na minha frente, com duas taças de vinho na mão.
Isabel tinha os cabelos ondulados soltos, um olhar diferente. Me estendeu uma das taças.
Olhei suas mãos, notei o decote do vestido, o seu colo, o colar no pescoço e na boca, em tom vibrante, um batom vermelho. Percebendo meu olhar de admiração, Isabel sorriu.
- Gostou?
Ficou mais distante para que eu pudesse observá-la. O vestido destacava a forma bem feita do corpo, o desenho da sua cintura, das suas costas e cobria as pernas, mas essas ficavam marcadas na seda.
- Você está...Diferente.
Isabel tinha um ar estranho. Onde estava a menina que chorava agarrada à boneca de pano? Estava tão mulher, tão madura e aquele batom vermelho...
O que estava fazendo? pensando? Que idade teríamos agora? Não conseguia entender sua mudança abrupta de comportamento.Estava perdido, confuso. Meus músculos tensos me tornaram imóvel. O que ela queria com isso?
De fato, era uma grande surpresa. Ainda assustado com a sua atitude e o olhar que agora me dirigia, mas encantado com a nova face de Isabel que se revelava para mim. Ela estava sempre me surpreendendo.
Segurou a taça delicadamente, sorvia o vinho tinto devagar.
- Diferente ruim?
Não sabia definir o que estava mudado, mas algo que eu nunca tinha visto, brotava dos seus olhos amendoados e quase castanhos. Não sabia explicar, não sabia entender, mas ruim não era. Estava hipnotizado. Não conseguia parar de olhar para os seus olhos, seu vestido e seus lábios tão vermelhos.
- Não. Diferente muito bom.
Sempre achei Isabel linda, mas nunca disse a ela. Contava a ela tudo que pensava, mas sobre isso nunca senti necessidade. Mas agora sentia, sentia muito forte o desejo de dizer a ela o quanto estava linda, o quanto era linda.
- Isabel...
Ela olhava para a janela pensativa, observando a noite chegar Se virou para mim e seu olhar me deixou zonzo, foi profundo. Aumentou a vontade que eu tinha de contar a ela o quanto era bonita.
- Você é linda.
A voz saiu leve e baixa, quase como um sussurro. Uma vergonha engraçada, uma sensação esquisita, mas precisava dizer. Sorriu satisfeita, sem a vergonha habitual que lhe corava as bochechas ao receber um elogio, Isabel sabia que estava bonita.
Levou a taça de vinho até a boca, acompanhei o movimento do gole. Ela não se incomodava com a minha observação, parecia nem notar.
- Téo, saberia definir o que é desejo?
Não sabia. Eu era muito ruim para definir sentimentos. Sentimentos estão dentro de nós, mexendo e brincando com as nossas ações, nossos corpos. Era difícil expressar em palavras o que nos acontecia. Acho que desejo era aquilo que eu estava sentindo olhando para Isabel. A vontade incontrolável de elogiá-la, a comichão e aquele desconcerto ´que eu estava só de olhar para ela, com aquela beleza toda.
- Acho que são vontades incontroláveis.
Balançou a cabeça um pouco, pensando na resposta. Eu, como sempre, não tinha certeza do que dizia, apenas respondia para dar, qualquer que fosse, uma resposta a Isabel.
- Discordo. Às vezes os desejos são controláveis.
Me olhou de novo daquele jeito fulminante.
- Acho que desejo é a vontade de não se controlar.
E riu da própria resposta.
Eu ainda hipnotizado acompanhava os movimentos dos lábios vermelhos de Isabel.
- Partindo da minha definição, já sentiu algum desejo muito forte, Téo?
Ela parecia entender o que acontecia dentro de mim melhor que eu, como se manipulasse as sensações que percorriam o meu corpo todo. Não sabia o que era desejo, não sabia o que era aquilo que me tomava ao olhar para ela.
Isabel estava tão diferente. Até eu estava diferente. Não conseguia me afastar na cena para assisti-la como expectador, não conseguia tirar os olhos dela nem responder suas perguntas.
- Acho que sim.
Falei rápido. Tentando evitar que Isabel percebesse as modificações em mim. Tarde demais, eu acho. Já escorregava no sofá e suava frio.
Estalava os dedos, o incômodo e a comichão.
Isabel parecia entrar dentro de mim com seu olhar e ler meus pensamentos, minhas sensações, o meu desejo.
- Eu acompanhei seu crescimento. Você passar de um menino magrelo a um homem. Barba, mudança de voz, vi você mudar. Mas acho que você nunca notou que eu virei mulher, não é, Téo?
Ela estava enganada. Eu notei sim. Notei desde que ela entrou na sala trajando o vestido longo de seda, usando aquele olhar malicioso de quem já cresceu. Notei no corpo marcado ela seda, no tom de voz arrastado e macio e no porte que ela tinha para carregar nos lábios um batom tão vermelho.
Não deixou que eu respondesse, continuou a falar.
- Mas não se culpe. Nem minha mãe, nem você, muito menos Cecília, que guardava na memória a lembrança de uma criança levada que corria a casa inteira.  Virei mulher dentro de mim, sem dizer ou mostrar a ninguém.
Ela não tinha ideia do quanto estava mostrando e do que me causava essa Isabel-mulher.
Bebeu o que restava de vinho na taça.
- Ah Téo, e eu te enchendo com as minhas tolices.
Não eram tolices. E mesmo que fossem. Estava tão bom ouvir a voz dela, acompanhar o movimento dos seus lábios, suas expressões. Eu nunca tinha visto Isabel daquele jeito e agora podia passar a noite inteira observando-a.
Mas se levantou antes que eu dissesse alguma coisa, pegou nossas taças secas do chão e levou até a cozinha. O corpo estava perfeito marcado na seda e observá-la me dava uma sensação de vertigem, estranhamente deliciosa. O batom vermelhou tocou meu rosto em um beijo. Tive vontade de dizer para ela não ir embora, não tive forças.
- Boa noite, Téo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

5 - O quarto de Cecília

Vi Isabel me procurando no jardim, acho que ela tinha esquecido que o jardim era proibido na brincadeira. Estava distante e subia à caminho do roseiral.
A escada do quarto de Cecília me chamava, não sabia quanto tempo aguentaria estar dentro da casa e não entrar. Subi as escadas na ponta do pé e quase me esqueci de que Cecília não poderia estar. O quarto dela também estava do mesmo jeito. Recordava com clareza o dia que tinha entrado lá e tentei inúmeras vezes retratá-lo em minhas pinturas de diversas formas.
A cama grande e encostada na parede, o teto baixo. Diferente do resto dos quartos, a cama de Cecília mal tinha lençóis, era mais empoeirado que os demais e agora, todo ensanguentado. Olhar para as manchas de sangue no chão, no colchão, me causava arrepios, mas compunha mais um dos mistérios do quarto de Cecília. Nas paredes, fotos e imagens recortadas de revistas, poesias tristes escritas na parede com letra trêmula, nada parecidas com as paredes do quarto de Isabel, que eram muito bem pintadas e com papel de parede florido contornando tudo. Tia Inês tinha mania de organização, imaginei que se ela entrasse no quarto da filha daquele jeito teria um ataque, como tinha quando eu e Isabel deixávamos almofadas no chão. Mas como Cecília era um segredo, seu quarto era seu refúgio e maior tradução, portanto, inacessível. Até para Tia Inês, até para ela mesma.
Era como se o quarto fosse vivo, como se a presença dela permanecesse. Toda a angústia que carregava no peito, que transmitia para nós e que estava impregnada em tudo ali. Ao lado da cama, um baú. Abri com cuidado, com medo do que encontraria. Muitos cadernos, diários. Datados de muito tempo. Uns com letra de criança, outras mais formatadas. Acho que os diários acompanharam a vida de Cecilia como uma forma de descarregar o peso de sua alma, que parecia imenso.
Dentro do baú, algumas outras coisas. Fitas de cabelo, perfumes, livros, as coisas de Cecília. E eu fui me lembrando dela com aquelas coisas, da presença e fui sentindo-a perto de mim. Mais uma vez a carga de adrenalina que ela me causava.
Próximo à janela, uma escrivaninha. Dentro das gavetas, havia de tudo. Postais, selos, envelopes, como se preparasse muitas cartas. No armário antigo, não havia nada. Apenas poeira e algumas teias de aranha.
Era aparentemente um quarto normal. Mas a energia dentro dele não permitia que fosse comum, havia algo de excêntrico, de vivo e de morto. da presença de Cecília e todo o seu mistério.
Fiquei um tempo parado, imaginando a vida de Cecília. Seus hábitos, seus medos, seus pensamentos, o que ela fazia no tempo em que ficava no quarto?
O que pensava? O que queria? Foi embora dessa vida porque se encontrou ou para se encontrar? Que encontro era esse?
Cecília permanecia aquele mistério, mesmo agora que era só uma estrela brilhante que víamos do telhado. De repente quis acreditar nisso, para vê-la outra vez, ainda que fosse brilhando no céu.
Abri o baú novamente, peguei os diários. Eu precisava ler, precisava entende-la. Agarrei seus antigos cadernos e desci até o quarto de Isabel, pensando em onde escondê-los. Sem muita criatividade, escondi-os em baixo da mesa. Ela não ia olhar ali, eu sabia.
Ainda queria voltar no quarto de Cecília, eu teria outra oportunidade? E de novo essa coragem?
Que horas seriam? Quanto tinha passado no quarto de Cecília perdido em pensamentos, e há quanto tempo estávamos brincando?
Olhei pela janela, caía a tarde. Lembrei do relógio que ficava na cozinha, estava parado. Isabel tinha razão, tempo nessa casa era mesmo uma abstração. Onde ela estaria agora? Ainda me procurando pelo jardim?
Sem querer o jogo inverteu, saí à procura dela. Nem na sala, nem no quarto, nem no jardim. Será que ela estava se escondendo de mim agora?
De todos os cômodos só faltava a garagem, desci as escadas da sala e lá estava ela. Brincando com uma velha boneca de pano descosturada. Ouvi os soluços, Isabel chorava.
- Isabel?
Os olhos dela saltaram aliviados das órbitas.
- Tééééo!
Cooreu em minha direção e se jogou nos meus braços.
- O que houve, Isabel? Por que você está chorando?
- Ai, Téo. Te procurei pela casa inteira, não te encontrei. Fui à todos os quartos, corredores. Até no jardim, até no telhado, por todos os cantos da casa. Pensei que você tinha ido embora, me deixado perdida no tempo, nessa casa.
Secou as lágrimas, ainda fanhosa.
Acalmei seu corpo junto ao meu, acarinhando seus cabelos, beijei sua testa.
- Não faria isso nunca, não te deixaria jamais.
Suspirou aliviada, ainda no calor do meu abraço. Apesar de toda a confusão, da nostalgia, dos minutos conturbados que vivíamos dentro da casa, era bom ter Isabel perto de mim. Ah, como era bom aquele abraço!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

4- Pique esconde

Deixei Isabel dormindo e fui fazer compras. Se íamos passar dias ali, era necessário comprar comida e outras coisas fundamentais. Passei também em casa, eu ia precisar de roupas. Entrei no carro e fiquei pensando em tudo o que tinha acontecido, tudo ainda parecia um sonho e eu tinha a impressão de que ia acordar no meu apartamento de Laranjeiras, achando que dormi demais.
Cheguei em casa e entrei para olhar Isabel dormindo. Sua expressão era bastante tranquila, descansada. Era bom que ela dormisse bastante.
Passei pela escada de Cecília e foi me dando uma vontade de entrar, aquela descarga de adrenalina no meu corpo. Se eu tivesse mais coragem...
Mas se nem Isabel ousava remexer essa parte da casa, imagine eu! Voltei para a cozinha para arrumar as compras , queria fazer a mesa de café da manhã da nossa infância. Tia Inês lotava a mesa de coisas gostosas antes de ir trabalhar, e nós que sempre acordávamos tarde, ficávamos horas comendo e fazendo palavra cruzada. Fiquei rindo sozinho das canecas penduradas, lembrando que nós adorávamos mudar a ordem só para irritar tia Inês, como os meninos levados que éramos.
Percebi que Isabel me observava encostada no vão da porta, com os longos cabelos bagunçados e a expressão de quem ainda tem sono. Ao ver que ela me olhava, corei as bochechas e tornei a ficar sério.
- Devia sorrir mais vezes, Téo. Fica mais bonito.
Me beijou a bochecha, fazendo barulho e se sentou ao meu lado.
 - Estou faminta. Onde arranjou tudo isso?
- Surpresa!
Os olhos de Isabel sorriram de um jeito pleno. Eu adorava fazê-la feliz. Qualquer esforço era recompensado pela alegria dela.
Isabel devorava um muffin de chocolate com voracidade e seus olhos brilhavam de gula ao olhar para tudo que ainda restava na mesa.
- Não precisamos comer tudo hoje, Bel.
Me deu um tapinha no braço e enfiou o que restava do muffin, e de boca cheia resmungou
- Não tem graça!
- Isabel, lembra quando tomávamos café da manhã aqui e brincávamos de forca? às vezes nos divertíamos tanto que ficávamos para o almoço.
Isabel quase se engasgou com o muffin que mastigava e começou a rir, batendo palmas.
- Téo, qual é a sua lembrança mais forte nessa casa? Qual era a coisa que você mais gostava?
Tantas coisas passamos, tantas coisas eram especiais, de tudo eu gostava. Quanto tia Inês saía, nós brincávamos de pique esconde, só nós dois. E Isabel realmente demorava para me encontrar, tanto que eu ficava com saudade dela.
- Das brincadeiras de pique esconde.
Seus olhos saltaram
- Se nós brincássemos de pique esconde agora?
- Já somos velhos para isso.
- Podemos ser velhos agora, mas aqui você escolhe a idade que quer ter, e teremos.
Fiquei ainda algum tempo na mesa, e Isabel se levantou. Fiquei olhando-a entrar no quarto e fechar a porta. O andar alongado e delicado, como se nem pisasse no chão.
Seria bom andar pela casa. Será que o quarto de tia Inês continuava do mesmo jeito? E a biblioteca? As milhões de gavetas do escritório...
Minha imaginação voou solta pela lembrança que eu tinha dos cômodos da casa.
Isabel voltou trajando um vestdo curto e sol, amarelo, com uma trança nos cabelos. Veio saltitando em minha direção.
- Pronto? Eu conto. Mas não vale no jardim nem no telhado. Se não, não nos encontraremos nunca mais.
Sorriu achando graça.
Foi em direção à parede e vendo que eu continua parado, resmungou impaciente:
- Vou começar a contar, hein?
Continuei estático na mesa ainda posta.
- 1, 2, 3...
Contava alto para me convocar à brincadeira.
Resolvi me mexer. Fui em direção ao corredor, todas as portas fechadas. Eu temia tanto aquele corredor! Isabel dizia que seu pai vinha visitá-la exatamente ali. Ela não tinha medo, mas eu sempre fui covarde. Mesmo com vontade de rever o tio Vicente.
Entrei no escritório tomando cuidado para não fazer barulho, aquelas portas de madeira rangiam demais. O escritório estava mais bagunçado que nunca. Papéis espalhados por todos os cantos, gavetas abertas, poeira. Na mesa, o portarretrato com a foto da família. Tia Inês à direita, com os cabelos compridos e tingidos, com um sorriso sincero e um vestido que lhe caia muito bem. Como era bonita na juventude! E eu nunca tinha notado. À esquerda Tio Vicente, com a barba grisalha  e a inseparável vara de pescar. Nunca soube responder com que ele trabalhava, só sei que pescava aos fins de semana. Tia Inês acarinhava os cabelos de Isabel, uma menina levada que fazia careta para a foto. Cecília ao lado do pai, sorria tristemente. Os cabelos muito curtos, o olhar distante. Olhava para a foto, mas via muito além. Aquela necessidade de se encontrar. Será que nós nos encontramos em algum momento da vida? Ou diferente de Cecília, não pensávamos naquilo.
- Lá vou eu!
Ouvi Isabel gritar, seus passos andando pelo corredor. Não queria ser encontrado, não agora, mal tinha adentrado o primeiro quarto.
Entrei devagar do armário do escritório. O cheiro de mofo e a enorme quantidade de poeira me faziam querer espirrar, mas eu tinha que me segurar enquanto Isabel passava por ali.
Abriu a porta fazendo barulho.
- Ah, não está aqui!
Cantarolava enquanto andava pelo corredor. Esperei ela passar para sair do armário empoeirado. No escritório não restavam muitas coisas. Tia Inês tinha se desfeito de quase tudo quando tio Vicente morreu. Muitas pessoas consideraram desapego, mas a verdade é que doía demais arrumar o cômodo e sentir a presença do falecido marido.
Era hora de passar para outro quarto. Olhei em volta e vi que Isabel não estava.
Entrei de rapina no quarto de Tia Inês. Tinha cheiro de naftalina. A cama alta, a roupa de cama muito velha e amarelada, a penteadeira com muitas jóias e perfumes antigos. Ela não tinha levado nada à Arraial do Cabo?
Quando Tia Inês saía, vínhamos ao seu quarto para pular na cama. Se ela sonhasse com aquilo!
Abri a gaveta de Tia Inês, lá estavam duas cartas. Abri o primeiro envelope, um bilhete de tio Vicente.
"Adorada Inês,
Viajo agora deixando contigo parte de mim, mas saiba que será curto o tempo em que ficaremos separados, e que pensarei em você à todo instante.Dê beijos nas meninas e pergunte à Isabel o que quer de natal, sem que ela perceba.
Uma atenção especial à Cecília, ela me parece melancólia demais.
Com amor,
Teu Vicente."

Dobrei a carta e pus de volta no envelope. Ler aquilo me fez sentir falta do velho tio Vicente, com a barba grisalha e as histórias sobre barcos e sereias. Quando ele morreu, eu era ainda um moleque, mas me recordo com clareza de sua gargalhada e do seu cheiro de maresia.
O outro envelope era um cartão postal da Bolívia, de Cecília.
"Mãe,
Ainda não penso em voltar para casa, mas não se preocupe, estou bem.
Cecília."
Não tínhamos contado à Tia Inês o ocorrido, imaginei como ela ficaria abalada. Não quis mais pensar nisso, saí do quarto. Isabel estava na sala, corri com cuidado até a biblioteca, me escondi entre as estantes.
A biblioteca era proibida, só Cecília podia entrar, nós nunca entedemos porque.
Isabel chorava como uma criança dengosa dizendo que aquilo era por preferência pela irmã. Cecília era distante de nós, sempre intocável, tinha o costume de estar sozinha, nós nunca podíamos estar onde ela estava.
Passei um pouco pelas estantes, sentido o cheiro de antigo dos livros.
Quando se completa a idade necessária para ver um filme com censura, a gente se sente grande, capaz, tendo acesso ao proibido. Era a mesma sensação.
A biblioteca que nos era proibida, era agora toda minha. Romances, enciclopédias, antologias poéticas. Eu seria capaz de passar a vida inteira ouvindo Isabel ler todos aqueles livros para mim, sem me cansar.
Ouvi Isabel se aproximando, escapoli. Fui olhando para trás, preocupado em não chamar atenção, em não ser visto. Tombei em um degrau e quase caí, me deparei com a escada de Cecília.

domingo, 4 de outubro de 2009

3 - Boa noite

Entramos de novo na sala. Sujos, molhados, exaustos. Exatamente igual quando éramos pequenos. Isabel largou a cesta de amoras na cozinha e abriu a porta do seu quarto.
O quarto de Isabel era como uma casinha de bonecas. Papel de parede com flores, cortinas azuis, quadros de pintores renascentistas, bonecas de porcelana. Era o lugar onde menos ficávamos, só quando tinhamos que dormir.
- Veja só, Téo. Esse lugar parou no tempo.
Eu pensava o mesmo, ainda tudo da mesma maneira. No criado mudo ao lado da cama, um bilhete meu, com letra de criança.
"Bel, você é minha melhor amiga.
Téo"
Na estante de livros, nossos preferidos. Nós íamos ler no jardim. Isabel lia alto para eu ouvir, pois sempre teve uma dicção perfeita e eu sempre fui preguiçoso. Gostava das histórias, de imaginar, mas passar os olhos pelas palavras me desagradava.
- Vou tomar banho, fique aqui.
concordei com a cabeça.
Era sempre assim. Isabel ia tomar seus banhos demorados de mocinha e eu ficava no quarto dela, procurando com o que me entreter. era um quarto de menina, mas eu sempre achava alguma distração. Afinal, eu e Isabel passamos a vida juntos e eu descobri e aprendi tudo com ela. Se as paredes tivessem ouvidos, como dizia Tia Inês para que não ficássemos cochichando a noite inteira, aquele quarto saberia tudo sobre nós.
Passavamos o dia entre uma brincadeira e outra, e quando íamos dormir confessavamos nossos pensamentos, nossas dúvidas, as coisas que imaginávamos. Eu sempre fui o mais medroso e Isabel, a dona das respostas. Mas vez ou outra ela me consultava sobre algum assunto e eu dava uma resposta, só porque não achava justo ficar calado, e ela acreditava com muita força no que eu dizia. Eu ficava orgulhoso de ter tanta credibilidade para Isabel, e nunca entendi o  porquê.
Abri a gaveta de Isabel, lá estavam desenhos, prendedores de cabelo, cadernos da época do colégio.
Isabel não era muito boa aluna, passava a aula de fofoquinha com as amigas, enquanto eu que era mais sozinho, me dedicava mais aos estudos. Bel queria ser atriz, e sempre disse que matemática não lhe serviria. Isabel é uma boa atriz, de fato. Mas mal sabia ela, no auge dos nossos dezessere anos, o rumo que a vida traria para nós.
A chuva ainda caía lá fora, o carnaval ainda corria na rua, mas nós não estávamos no mundo. estávamos em casa, protegidos e guardados pelos anos que moravam ali dentro, protegidos por nossos próprios fantasmas, nossas recordações, os vultos distantes que na casa eram vivos, parte de nós.
Isabel interrompeu meus pensamentos abrindo a porta de madeira, fazendo barulho, trajando a antiga camisola. Cor-de-rosa, com flores, cheia de babados. Os cabelos compridos e molhados ao longo das costas. Por alguns segundos, me esqueci de tudo que tinha acontecido, voltei no tempo. Isabel era a mesma menina e eu ainda o mesmo Téo.
- Quanto tempo não vestia isso. Tinha me esquecido a sensação de algodão antigo tateando a pele.
Me deu um meio sorriso.
Deitou na cama, se esparramando. O lençol tinha cheiro de guardado, de antigo. Era tudo muito empoeirado e faria mal as minhas alergias. Mas quem se lembra de alergias quando se trata da alma?
- Reparou que a chuva cessou, Téo?
- Nem tinha me dado conta.
Se levantou abruptamente, ficou em pé na cama para alcançar o armário. Isabel era pequenininha, bem menor que eu, e isso a deixava antiga mais graciosa, pois conservava nela o ar de menina. Puxou com esforço uma caixa pesada. Eu me lembrava daquela caixa, só não conseguia lembrar o que se guardava ali dentro. Puxou com eforço a luneta.
Claro, como pude me esquecer? Enquanto morou aqui Isabel foi apreciadora exímia do céu, gastava às vezes um dia inteiro observando. Especialmene à noite, pois adorava as estrelas e lua. Hábito que herdou do pai.
- Ainda tem medo de subir no telhado?
Eu tinha.
- Tenho.
- Mas faria por mim?
- Qualquer coisa por você, Isabel.
Me deu a mão.
Subiu na mesa que ficava em baixo da janela.
- Eu vou primeiro.
Disse para me aliviar.
pôs os pés na janela e se agarrou nas telhas, em um pulo estava no telhado.
- Agora me passe a luneta e suba.
Gritou comandando.
Assim fiz, como ela orientou. Isabel era sempre a cabecilha, coordenava toda as brincadeiras. Iventava, mandava, dizia como tinham que ser. E era a primeira a se aventurar, como se tivesse que me proteger. Agora estávamos os dois lá em cima, eu contendo meu meu medo de altura, e Isabel como se alcançasse o apse da realização, trançando os cabelos, como se tivesse encontrado a paz.
- Relaxa, Téo. Não há como aproveitar a vista se ficar nessa tensão toda.
Segui seu conselho e me deitei nas telhas como ela, segurando sua mão, me dava segurança.
- Téo, você acredita em Deus?
- Não.
Respondi rápido, sem pensar muito no que ela perguntava.
- E quem você acha que fez tudo isso, que controla esse céu, que cuida do meu pai - suspirou mais fundo- e de Cecília?
- Não sei, Isabel.
Ficava meio impaciente quando ela me perguntava essas coisas. Tem certos pensamentos que doem. Me contestar sobre a existência de Deus foi algo que nunca fiz. Tive formação religiosa, mas com o tempo fui perdendo a crença em tudo. Era mais fácil responder que não acreditava mecanicamente, sem ter que pensar nessas coisas.
- Téo, você mentiria para mim?
- Ah, Isabel, que tolice é essa agora? você sabe que eu não minto para você.
Ficu um minuto em silêncio, olhando as estrelas na luneta, quando olhou para mim, com um olhar profundo e indecifrável.
- Quando meu pai morreu, subimos para olhar as estrelas. Eu chorava sem parar pois pensava que nunca mais o veria e que onde estava agora, não havia ninguém para cuidar dele. Entregar seu leite quente antes de dormir, levar o jornal até sua cama, cantar canções para que ele dormisse, ouvir as mesmas histórias todas as vezes que ele quisesse contar. Você então me disse que eu não me preocupasse com isso, que meu pai viraria uma estrela e seria a mais brilhante que eu conseguisse ver e que Deus enviaria anjos para cuidar dele por mim. Era mentira?
Quando Isabel se sentia angustiada com alguma coisa, eu precisava de todo jeito arranjar uma forma de deixá-la mais calma. Pois Isabel era a paz para mim e se ela estava angustiada, era ver meu mundo entrar em guerra. Talvez por uma questão até de egoísmo, eu precisava ter Isabel contente. Ela me trazia a resposta de todas as coisas do mundo, e eu quase nunca lhe era útil. A não ser em momentos de extrema aflição como hoje e aquela outra noite no telhado.
- Crianças não sabem o que dizem, Isabel. Creem em tudo.
Vi uma lágrima escorrer dos seus olhos.
- As coisas simplesmente deixam de existir ou nos tocamos de que elas nunca existiram realmente?
Perguntou ingênua.
- Acho que percebemos que era tudo fantasia infantil, uma forma de explicar o que era sem explicação e aplacar dores que eram grandes demais para o coração de criança.
Soltou minha mão devagar.
- Téo, então só por hoje vamos ser crianças? Para que pelo menos, essa noite, os anjos cuidem do meu pai - suspirou fundo outra vez- e de Cecília.

sábado, 3 de outubro de 2009

2- O Jardim

O Jardim estava bonito, apesar da grama alta que cobria nossos pés. A chuva tinha feito bem às flores e as folhas, bem verdinhas e vivas. De novo olhei a cena de fora. Isabel passeando por seu jardim distante da realidade que ela tinha que enfrentar, como se não pensasse mais em tudo que tinha acontecido. Procurava as melhores amoras e as depositava em sua cesta e quando notava minha observação, jogava amoras em mim como fazíamos quando éramos pequenos para irritar um ao outro e nossas mães, claro, por ficarmos todos sujos.
O jardim também tinha sido todo nosso. Guardava tantas brincadeiras! Corríamos pro ele com Bóris atrás de nós , nos sujavamos todos de amora e ligávamos a mangueira com a desculpa de aguar as plantas, mas só mesmo para ficarmos encharcados. Cecília também costumava ir ao jardim, mas nós não íamos quando ela ir. Isabel não era de explicar demais, só dizia que Cecília gostava de ficar sozinha. E enquanto Isabel ia se bronzear ao sol, eu ficava escondido observando Cecília no jardim.
era quando ela ficava mais bonita, entre as flores. Levava um livro ou ficava escrevendo. Quando fazia sol, só deitava na grama e ficava de olhos fechados. Queria tanto saber o que ela pensava, como era a vida dela. O mistério todo que ela guardava...
Quando ela voltava de madrugada para casa, também ia ao jardim. Esperava acordado a hora dela voltar, me preocupava. Vez ou outra eu mesmo a carreguei até a sala, ou a porta do quarto, mas gostava mesmo era de ver o que ela ia fazer. Voltava tonta, acompanhada por amigos que a deixavam aqui e iam embora. Muitas vezes tomava remédios para dormir, e eu ficava com vontade de abraçá-la e não podia, porque Cecília foi sempre aquela coisa intocável.
Começou a cair um chuvisco fraco, daqueles que gripam a gente.
- Isabel, vamos entrar? Está chovendo.
- Mais um motivo para ficarmos. Você se importava com sereno quanto tinha nove anos?
Me sorriu.
Se jogou na grama. A água da chuva que molhava seu rosto fazia transparecer um pouco na essência alegre natural de Isabel.
- Qual foi a última vez que você foi feliz, Téo?
Feliz... Qual tinha sido a última vez que fui feliz? Poderia dizer que tinha sido ontem, que estava, que nunca fui, porque o fato é que eu nunca tinha parado para pensar no que, de fato,era felicidade.
Caia do céu aquela chuva fina e eu fiquei tentando me lembrar a última vez que tinha tomado um banho de chuva espontaneo. foi no último carnaval que vivi, porque todos os outros apenas assisti da minha janela.
Eu e Bel éramos ainda garotos. Eu tinha acabado de completar dezoito e ela ainda faria no fim do mês.
Isabel fez questão de que´nós saíssemos em todos os blocos. Era nosso último dia de carnaval, algo próximo das dez horas da noite e estávamos desde de manhã de bloco em bloco, correndo atrás de bonde e estandarte. Na ladeira mais estreita de Santa Teresa, começou a tocar "Máscara negra" e o bloco subia sem parar. As pessoas pulavam, sambavam, cantavam, ninguém parava um segundo sequer e eu sendo empurrado por aquela massa de gente.
Alguns trovões de aviso e do céu desabou um temporal. A multidão carnavalesca comemorou porque tudo em tempos de carnaval é poesia, é beleza. Olhei para Isabel e lá estava ela, tão linda... Com seu melhor sorriso de felicidade mais pura. Ali fui feliz. Como nunca mais fui. E guardei aquela lembrança bem escondida na minha gaveta de boas recordações.
- No meu último carnaval.
suspirou profundamente, como quem sente saudade.
- E o que é felicidade para você, Téo?
Pensei de novo no episódio do carnaval e no que tinha feito dele o mais feliz.
- É estar em um temporal, rodeado por uma multidão desde o nascimento do sol, com tambores te ensurdecendo e achar que é poesia.
Virou o rosto delicado para mim.
- Ai, Téo.. você fala e parece filme!Sente falta dos nossos carnavais?
- Sinto falta da nossa felicidade.
Deitei a cabeça em sua barriga, sentindo a chuva cair.
- Acha que ainda há tempo, Bel?
- Dentro dessa casa, o tempo é uma abstração.
Sua voz era um sussurro, mas me passava credibilidade.
Começou a correr pelo jardim, de um lado para o outro, eu ainda deitado na grama, sem a força que Isabel tinha para tentar ser feliz.
- Lembra quando eu disse que queria ser um passarinho?
Isabel tinha cada lembrança...
- Você toda semana queria ser uma coisa diferente.
- sim, mas lembra quando eu disse que queria ser  um passarinho?
Que relevância tinha isso? Murmurei em sentido positivo. Caiu por cima de mim.
- Ainda reservo essa vontade em segredo, mas não diga a ninguém.
Isabel era uma menina. Isabel ainda era uma menina.e a sua meninice me salvava da mediocridade do mundo.
- Téo, se pudesse ser outra pessoa, quem seria?
- Não sei, talvez o Mauro, nosso professor de química do ensino médio.
Sorriu achando graça.
- Bem escolhido. Boa cabeça, bom físico, tem o fusquinha mais rodado de Santa. eu seria sua amiga se você fosse o Mauro.
Respondeu em tom de brincadeira.
Sentou com as pernas cruzadas e as maõs no queixo. Estava inquieta, mudando a todo instante de posição.
- Eu seria a Isabel dos carnavais. A Isabel que assumo como verdadeira nos dias de folia. a que digo que sou para os desconhecidos, a que controla minhas atitudes até quarta feira. Ela se parece comigo, só que é bem mais legal...
- Mas é mentira!
- Como mentira? Se vive em mim, se me controla e toma conta dessa Isabel sem graça de todos os dias comuns. É que no carnaval, Téo, somos quem queremos ser e não quem realmente somos.
- Mas é fingir!
- Fantasiar, Téo. e por que não? Não se trata de fingir mas de deixar fluir outros lados que moram em nós, mas que normalmente são ocultos por causa das nossas personalidades de rotina, personalidade que somos obrigados a ter pelo nosso cotidiano. Carnaval é isso, e é por isso que dá alegria.
beijou minha bochecha com delicadeza. E cortando qualquer possível pensamento meu de oposição, perguntou com rapidez.
- e se pudesse ser alguma coisa desse jardim, qual seria?
- O portão.
- Ora, Téo. com tanta coisa bonita por que logo o portão?
- Ele é o que permite a entrada a todas as coisas bonitas e assiste tudo o que acontece aqui. Acompanha toda essa beleza e tudo que é vivido, ele está sempre velando a vida do jardim. E você seria una árvore, adivinhei?
- Uma árvore? Deve ser chato ser uma árvore! eu queria ser uma borboleta. Ela está sempre deixando tudo mais bonito. Antes é uma lagarta e depois que vira uma borboleta, com toda a graciosidade e encanto, tem apenas vinte e quatro horas para viver. Mais vale um dia só intenso do que uma longe vida mansa.
Isabel sempre foi assim, intensa, vivendo cada dia com vigor, dando o máximo de si. Nunca entendi como aguentava minha calma quase preguiçosa de viver. Eu espero acontecer, Isabel não. Ela vai atrás dos acontecimentos.
- Isabel, já começa a escurecer. Vamos entrar?
- Vejo que não perde o medo de escuro. Mas vamos sim, que já estou com frio e farta dessa fantasia,preciso de um bom banho quente.

1 - A Notícia

Fazia frio. A chuva e a neblina transformavam a vista da minha janela em apenas um vácuo branco. O moletom velho, o chinelo, a barba por fazer. O carnaval pegava fogo nas ruas. As pessoas todas fantasiadas pulavam sem se importar com a chuva ou o frio, mas para mim, os únicos vestígios de carnaval eram os blocos que vez ou outra passavam por aqui e faziam barulho, interrompendo minha solidão silenciosa.
Iria preparar um chá, ver mais um dos filmes antigos e já vistos. Quem sabe aproveitar esse dia tão enfadonho para arrumar minhas gavetas, meu quarto, ou a cozinha. Desde que me mudei para essa casa. Tão grande, tão distante, fico me sentindo assim...
É como se houvesse nesses quartos ou corredores a falta de alguém. E não é possível. Todo o tempo foi assim, só eu e o velho Léo. Bom gato e companheiro. Mas sinto algumas vezes, que até a ele incomoda meu silêncio de sempre. Acho que nem para o meu gato sou boa companhia.
O chá fervia no fogo. Eu me encolhendo de frio, tentava me lembrar o que havia me feito tão triste. Nos últimos anos, a minha vida era sempre a mesma insatisfação. Sobrevivendo do que me foi herdado e vendendo à cada dois verões um quadro. Poderia ser meu fracasso profissional, a distância dos meus familiares. Eu, um homem de poucas palavras e poucos amigos, me via agora em um profundo vazio.
Pensei nos amigos me restavam. Só vi Isabel. Senti falta dela e da sua voz conselheira me dizendo que não era certo alguém tão jovem se trancafiar a essa vida fria. Onde Isabel estaria agora? Provavelmente pulando carnaval por aí,se fantasiando, indo de bloco em bloco.Ah, sim, ela sempre gostou dessa folia!
Isabel foi feita de uma alegria inabalável. Um sorriso que transcendente, uma paz dentro de si. Fico me perguntando de onde ela tirou forças para ser assim.
Voltei a olhar para o chá, fervia. Do lado do fogão a goteira fazia barulho quando a água pingava no balde, e era só o que eu podia ouvir. Com o chá fumaçando fui até a janela, ver o bloco passar de longe.
Aquele cortejo brincante, barulhento e lindo me fazia bem. Era bom olhar aquela alegria, ver aquilo tudo de cima, como um mero expectador do espetáculo que é o carnaval. Acho que na vida fui sempre assim, um expectador. Fico vendo as coisas acontecerem de longe. Não sou nada mais que isso: Permanência e observação. Por isso pinto. Fico vendo as pessoas viverem suas vidas, seus momentos, seus sentimentos. Sempre de longe, sempre neutro. Não retrato nada de mim pois sou apenas essa casca oca sem nenhuma emoção maior. Retrato o mundo à minha volta. As pessoas e como elas me fascinam, a vida em que parece que estou sempre alheio.
Puxei o cavalete com a tela ainda em branco para mais perto da janela, para imortalizar o "meu" carnaval.
O celular tocou. A foto de Isabel sorrindo com um girassol no cabelo, no dia em que fomos à Itaipava. Por um instante hesitei. Pensei em não atende-la. Ia me convidar para uma de suas programações carnavalescas e ia acabar me convencendo porque Isabel tinha mesmo esse poder de persuasão, e eu realmente não queria sair de casa hoje. Mas no fim das contas, sempre atendo.  Não tenho coragem de ignorar minha única amiga restante.

- Olá, Isabel.
- Oi, Téo. Preciso de você.
A voz de Isabel tinha um nó, algo que eu não conseguia definir, mas era diferente de toda voz que eu já tinha escutado dela, contrariando a alegria constante da qual era feita.
- O que aconteceu?
- Pode vir até minha casa? A casa dos meus pais, se lembra?
- Lembro, estou indo.

Desligou sem dizer nada. Algo de muito errado acontecia. Meus olhos se encheram de lágrimas sem saber o porquê. Não pensei muito, não troquei de roupa. Apenas larguei o pincel da mão e corri até o carro. Era preciso entender o que estava acontecendo.
Ainda lembrava o caminho da casa de Isabel, era óbvio. Tinha passado toda a  minha infância e adolescência frequentando aquela casa enorme em Santa Teresa. Meu pai e o pai de Isabel eram antigos amigos de pescaria. Morávamos em casas vizinhas em Arraial do Cabo, e quando nossas famílias decidiram vir para o Rio, o pai de Isabel já estava muito doente e em poucos meses faleceu.
Nós ainda éramos muito pequenos para entender a morte, e acho que nunca crescemos para isso, mas desde então, Isabel e eu nos tornamos mais do que amigos, companheiros inseparáveis de vivências e aventuras. Nossos pais foram muito ausentes durante todo o nosso crescimento, mas tivemos um ao outro em todos os momentos, em todos os mistérios que a vida nos apresentou, fossem eles grandes como a perda de um ente querido, ou como transformar a sala de estar no nosso parque de diversões.
A casa de Isabel tinha cheiro de brincadeira e novidade. Por mais que passássemos todos os dias de nossas vidas, ainda tinham muitas coisas para ver e conhecer. Gostávamos de subir no telhado para ver as estrelas, ou passar o dia nos molhando com a mangueira no jardim, nos pendurando no tecido que ficava preso ao teto da sala, fazendo estripulias até tia Inês mandar a gente parar. Mas de modo geral, não parávamos. Arranjando mais uma série de coisas a fazer.
Todos os quartos da casa ficavam sempre com as portas abertas, eram convidativos, menos o quarto de Cecília, irmã mais velha de Isabel. O quarto dela ficava no andar de cima, e ninguém podia entrar . E talvez por isso, fosse o cômodo mais interessante da casa. Cecília era um vulto, quatro anos mais velha, a distância exata para ser inatingível.
Cecília me fascinava, foi minha paixão de adolescência. Minha paixão platônica que não se desenvolveu nem jamais cessou. Às vezes, até hoje penso nela, no suspense que ela era, naquele jeito diferente de toda pessoa.
Isabel era linda, ainda é. Possui uma beleza medida, no ponto exato de tudo. A pele branca, os cabelos ondulados e escuros, atingindo a metade das costas. Os olhos amendoados e um olhar fulminante. As expressões bem feitas e o sorriso preenchido de toda a alegria. Cecília era diferente. Cortava os cabelos curtos, estava sempre tingindo de todas as cores, tinha uma vaidade diferente, ou talvez nem tivesse. Enquanto Isabel reservava um jeito delicado e romântico ao se vestir e se portar, Cecília era o mais incoerente possível. Isabel era indiscutivelmente mais bonita. Mas sem aquele mistério.
Em todos os anos que frequentei a casa de Isabel. Tantos cafés da manhã, almoços, jantares, poucas palavras troquei com Cecília e somente uma vez entrei no seu quarto, no meio de uma madrugada, quando ela não estava e Isabel dormia profundamente.
De todas as formas que imaginei o quarto de Cecília, ele conseguia ser ainda mais interessante. Poesias escritas na parede, quadros, imagens, tudo meio bagunçado, mas como se as coisas estivessem todas devidamente em seu lugar. Encostada na parede, uma cama grande e baixa, os sapatos espalhados pelo chão, fotos tremidas em portarretratos, pouca coisa se entendia. Garrafas secas de bebida, pedaços cortados de cabelo, tintas abertas. Era como um mundo novo, um mundo todo dela. E o seu quarto foi para mim, até hoje, sua maior tradução.
Cecília estava sempre na rua, sempre entrando e saindo com os mesmos amigos esquisitos. Nunca falavam comigo e o máximo que ela me dirigia era um sorriso tímido e vazio. Havia algo nela de melancolia que não ia embora nunca. Estava constantemente nos seus olhos aquela sombra de dor. E como se Isabel fosse seu extremo oposto, era toda felicidade e transparência.
Passando pelas ladeiras de Santa teresa, fiquei me lembrando de como era gostoso descer tudo aquilo com Isabel para comprar balas, ou ir buscar alguma coisa no mercado quanto Tia Inês precisasse. Como era bom soltar o controle da bicicleta e deixá-la descer sentindo o vento no rosto. E quando ainda éramos pequenos demais para acompanhar os blocos, nos fantasiávamos e íamos pelas ruas cantando marchinhas. Tantas coisas vividas!
Isabel se mudou cedo de casa, logo depois de Cecília. Conseguiu ser independente e lidou muito bem com a ausência dos pais e falta de estabilidade na vida. Rápido trabalhou e pôde se mudar. Desde que era uma menininha com tranças quase arrastando no chão, dizia que não se sentia bem na casa dos pais. Fazia muito tempo que Isabel não não voltava lá, muito tempo que ela nem mencionava a casa dos pais. O que fazia ali e daquele jeito?
Fui vendo o muro da casa de Isabel e foi me batendo uma emoção estranha. Uma nostalgia, afinal, a minha vida estava guardada por aquela casa. À porta da casa estava Isabel.
Vestida e maquiada de colombina, aparentemente pronta para mais um dia carnavalesco. Mas nos seus olhos uma expressão enigmática.
Parei o carro na frente da casa. Ela pareceu não se importar com o que eu vestia. Correu até meus braços e me abraçou muito forte, o mesmo abraço do velório do pai. De repente, o nó que estava em sua garganta no telefone mais cedo, se desfez.
- Cecília Morreu.
E desatou a chorar.
Depois que Cecília saiu de casa, tomou o mundo afora. Estávamos na sala reunidos, assistindo "Hair". Já era clássico assistirmos eu, Isabel e Tia Inês aos fins de semana. Ouvi os passos de Cecília descendo as escadas de seu quarto, eu sempre ficava tenso, uma descarga de adrenalina possuia meu corpo todas as vezes que isso acontecia. Cecília tinha uma mochila nas costas e apenas disse que ia embora para sempre. Ouvi-a dizer algo à Tia Inês sobre precisar se encontrar. Tia Inês correu com Cecília para o jardim e ficaram conversando até escurecer e nós apenas ouvíamos os gritos de Tia Inês. Quando chegou a noite, tia Inês voltou com lágrimas nos olhos e mandou Isabel ir se despedir de Cecília. Não fui, mas fiquei vendo da janela ela entrar no ônibus com a mochila nas costas, e desde então, o máximo de contato com Cecília era através das cartas e postais que ela mandava para Isabel.
De novo a descarga de adrenalina de tempos atrás quando encontrava Cecília. O que estava acontecendo?
Isabel parada na casa dos pais, com aquela voz estranha, aquele abraço apertado que ela só usava em velórios e outros dias muito tristes e aquela notícia sem explicação.  Tal assombro me fez empalidecer.
- Como, morreu?
Isabel não conseguia dizer nada. Segurava-me forte ainda, soluçando. Apertava meus braços com muita força, como para aliviar a falta que pesava dentro da sua alma. Fiquei abraçado à Isabel, sem solta-la, com ela encostada em meu ombro, ouvindo a batida alta e forte do seu coração machucado em um silêncio ensurdecedor, até Isabel me entregar uma folha de papel meio amassada que tirou de dentro da fantasia.
Tremendo abri o papel:
"Ainda preciso me encontrar.

Cecília."

Isabel me puxou para a calçada, sentamos. Respirou fundo para criar forças.
- Eu já estava pronta para sair quando Cecília me ligou e disse que estava na casa da mamãe, que tinha parado de viajar para sempre e que queria me ver. Eu disse que estava de saída, mas ela pediu para que eu viesse vê-la ainda hoje, insistiu na urgência e disse que a chave estaria no mesmo esconderijo de sempre. O tapete à porta de casa.
Respirou mais fundo.
- Entrei em casa ansiosa, gritando por Cecília. Queria muito vê-la depois de todos esses anos. Corri até seu quarto e lá estava ela...
Abracei Isabel mais forte, mas ela escapou dos meus braços. Precisava respirar.
- Cecília se matou, Téo. Cortou os pulsos com aquela velha tesoura que cortava os cabelos. Lembra?
Desatou em um choro desesperado mais uma vez.
- Será que eu demorei? O que ela queria me dizer? Eu poderia ter impedido? Me desculpa, Téo. Eu não queria te incomodar, mas é o único a quem posso recorrer.
Aquela confusão ainda estava dançando em minha mente. A ficha de algumas coisas demora mesmo a cair. Aquilo era ainda mais complicado porque minha única e verdadeira fonte de alegria se derramava no choro mais sofrido que eu já tinha visto e precisava tanto de alento, tanto de mim. E a história toda ainda procurando fazer sentido na minha cabeça.
Olhei de novo para ela, dessa vez tentando me abster da história, de novo como o simples expectador que sou, e fiquei assistindo a cena. Aquela colombina de maquiagem borrada, sentada naquela calçada com o fundo no muro verde e a copa das árvores aparecendo. Aquele olhar triste, aquela tristeza toda... Tristeza que eu só vi igual na própria Cecília, embora nunca a tenha visto chorar e por mais incrível que pareça, estava sempre rindo, conseguia ter naquele sorriso enorme abismo de tristeza.
Me dei conta mais uma vez de como Isabel era bonita. O Cenário e toda aquela emoção ajudavam, mas era tão bem feita...Não havia nada de errado, nada de mais ou de menos, era exata. Aquela alegria, aquela segurança inabalável, aquele jeito de Isabel de sempre tocar a vida para frente  não importando o que acontecesse. Ela que sempre me tirava das piores depressões, dos maiores momentos de solidão e vazio, ali, desabando na minha frente. E eu queria mais que tudo poder tirar aquela dor de dentro dela.
-Tem certeza de que ela esta morta? De que não há jeito de salva-la? De repente se nós chamássemos a ambulância...
Isabel levantou a cabeça sem forças.
- Acho que é o que temos que fazer.
A ambulância demorou para chegar. Em tempos de carnaval, parece que tudo para. Inclusive os hospitais. Ficamos vendo o corpo de Cecília já sem vida ser levado. Em alguns sonhos eu me imaginava encontrando Cecília novamente. Pensava em onde ela poderia estar, lembrando dela descendo as escadas naquela melancolia poética.
Olhei para os olhos bem feitos de Isabel, pareciam perdidos. Seguimos para o hospital esperando uma notícia, uma confirmação. Sabíamos que não teria jeito, mas ainda assim nos abraçávamos em um fio de esperança.
Como eu já esperava, nos disseram que Cecília estava morta e que teríamos uma série de coisas para resolver. Estávamos perdidos.Eu não fazia a menor idéia de como proceder e Isabel muito menos, fantasiada de colombina e chorando sem parar.
O hospital comunicou que nada poderia fazer por nós. Como a morte não havia sido natural, teríamos que chamar a polícia.
Boletim de ocorrência, autópsia, IML, enterro. O processo quase interminável nos exigia praticidade e uma dose imensa de realidade, da qual não queríamos provar. Sem dormir, sem pensar, sem querer crer no que nos acontecia, Isabel e eu enfrentamos uma maratona de burocracias e problemas, tentando lutar contra nossos corpos que pediam por tranquilidade, colo e calor.
Feito tudo o que nos cabia, exaustos, sugados até as últimas forças, encostamos na porta do carro, sem saber que direção tomar.
- O que você quer fazer agora?
Estava disposto a realizar qualquer vontade dela.
- Quero ir para casa.
- Para a sua casa?
- Não. Para a casa dos meus pais.
- Não te fará mal?
- Quero ir para casa.
Respondeu mais forte e foi o suficiente.
Entramos no carro e seguimos em silêncio. Isabel olhava para a janela e eu ficava tentando desvendar o seu olhar, seus pensamentos. Não sabia com que forças ainda dirigia, que razão ainda me controlava. Quando finalmente chegamos, Isabel saiu depressa do carro, tinha pressa de entrar, enquanto eu coordenava lentamente os meus movimentos.
Abri a porta para Isabel.
Eu tinha medo do que encontraria pela frente. A casa estava fechada desde que Tia Inês havia voltado para Arraial do cabo, onde morávamos ainda muito pequenos. Eu tinha medo de entrar. Era como entrar de novo na minha infância e adolescência, na minha vida inteira que tinha ficado para trás. Eu sabia que Isabel se sentia da mesma forma. Mas diferente de mim, era destemida, ia à frente, como se estivesse pronta para qualquer coisa e para sentir qualquer emoção que fosse, mesmo sabendo que não aguentaria mais muitas coisas por hoje.
O primeiro andar era a garagem, onde ficavam toda as coisas que não tinham lugar no resto da casa. Varas de pescar, brinquedos antigos, velhos quadros.
A primeira coisa que vimos foi a casinha do cachorro, o bom Bóris. Isabel ganhou Bóris no seu aniversário de sete anos. Eu ainda me lembro da sua expressão se surpresa ao ver o cachorrinho com um laço vermelho.Toda a felicidade transparecendo. Bóris morreu faz anos, foi um bom cachorro. Uma morte sem choro, Isabel sabia que o companheiro precisava ir.
O que mais me impressionava em Isabel era o seu poder de compreensão. Ela realmente se conformava  quando as coisas seguiam seu curso natural. E talvez por isso, estivesse tão inconsolável agora.
Subimos a escada que dava para a sala, continuava exatamente como da última vez que a vimos. A estante de livros, o sofá, o tecido preso ao teto, os livros de fotografia em cima da mesa, os quadros, os enfeites trazidos das viagens, tudo exatamente no mesmo lugar, como se tivesse parado no tempo.
De novo me veio aquela carga de adrenalina. Era como viver tudo outra vez.
- Téo...
A voz de Isabel era fraquinha.
- Está sentindo o que eu estou sentindo?
- Estou sim, Bel.
Segurei a mão dela, enconstei-a em meu peito, para que ela pudesse sentir meus batimentos cardíacos. Ela me abraçou forte(não tão forte como da última vez).
Sussurrou em meu ouvido com uma voz doce e suave.
- Obrigada por estar aqui.
Beijei sua testa. Mesmo tão triste e tão transtornada, com a fantasia torta e um resto de maquiagem borrada, Isabel conseguia ser linda demais. E talvez por essa tristeza toda, estivesse incrivelmente parecida com Cecília.
Isabel se deitou no sofá e eu logo em seguida, sentindo a espuma afundar. Tinha me esquecido durante anos a sensação de deitar naquele sofá. A casa tinha o mesmo ar de novidade muitos anos depois.
- Téo, será que podemos ficar aqui uns dias? Esquecendo de nossas rotinas, deixando para lá a vida que vivemos agora e ficarmos juntos aqui, como fazíamos enquanto ainda éramos crianças e não tínhamos essas preocupações?
Os olhos de Isabel me suplicaram e eu seria incapaz de lhe negar qualquer favor. Fosse o que fosse, eu estaria ao seu lado.
- Podemos, se é o que você quer.
Segurei sua mãozinha pequenina, delicada e branca.
- Téo...
Deixou a voz ecoar pela sala.
- Lembra quando meu pai morreu e eu te perguntei se mistérios como a morte ficavam menores quando a gente crescia?
Consenti com a cabeça. Eu, à propósito, pensava nisso naquele exato instante.
- Sabe Téo, ficam maiores ainda quando perdemos a inocência.
Um silêncio invadiu a sala e eu ainda segurando a mão dela.
- Bel, se você nunca se sentiu bem aqui, por que voltar para cá logo agora?
Respirou fundo como daquelas vezes na calçada.
- Eu estava errada, Téo. Eu sonhava tanto com a vida fora dessa retoma, fora da barreira que criamos dentro dos limites dessa casa, imaginava tudo diferente. Hoje vejo que o que eu achei que era uma prisão, é na verdade ,um refúgio.
- E vai ficar bem aqui, perto de todas essas lembranças?
Perguntava como se minha preocupação fosse apenas com ela, mas por dentro, eu mesmo era quem estava com medo.
- A casa vai nos ajudar nesse momento. Essas lembranças são nossas vivências, vão nos lembrar dos nossos sonhos. Como tínhamos sonhos, Téo! Essa casa vai nos ajudar a sermos felizes outra vez, como fomos aqui. Você se lembra?
Eu me lembrava. Me lembrava muito bem de todos os momentos passados e de como éramos felizes entre as paredes daquela casa. Era como se nunca tivesse um fim, fosse sempre uma aventura.
Isabel deitou no meu colo e apoiou no  encosto do sofá seus pés, em meias listradas.
- Entende que essa casa é mágica? Aqui podemos ter a idade, a lembrança, o dia que quisemos. Está tudo aqui. Nossa vida, Téo. Protegida nessa casa.
Fiquei passando meus dedos entre os cabelos ondulados e macios de Isabel e admirando o jeito encantador que ela manteve ao longo dos anos.
- Sabe do que eu tenho vontade agora?
Os olhos de Isabel brilharam de um jeito especial, de um jeito de criança.
- Que tal se fossemos arrancar amoras no jardim para fazer geleia, como fazíamos?
Eu só queria deitar e dormir, pensar no que tinha acontecido. Ainda era tudo muito confuso e Isabel sempre me surpreendia com suas vontades.
- Téo, eu escolho agora ter nove anos e passear pelo jardim colhendo amoras e manchando as roupas.
Se levantou de pressa, ainda trajando a fantasia e se dirigiu ao jardim com a antiga cesta de colher amoras na mão. Eu achava muito cedo para brincadeiras. Ela falava sério?
- Me acompanha?
Piscou o olho em convite.
Perco a resistência, desisto de minhas opniões, sucumbo à todas as vontades de Isabel.