domingo, 4 de outubro de 2009

3 - Boa noite

Entramos de novo na sala. Sujos, molhados, exaustos. Exatamente igual quando éramos pequenos. Isabel largou a cesta de amoras na cozinha e abriu a porta do seu quarto.
O quarto de Isabel era como uma casinha de bonecas. Papel de parede com flores, cortinas azuis, quadros de pintores renascentistas, bonecas de porcelana. Era o lugar onde menos ficávamos, só quando tinhamos que dormir.
- Veja só, Téo. Esse lugar parou no tempo.
Eu pensava o mesmo, ainda tudo da mesma maneira. No criado mudo ao lado da cama, um bilhete meu, com letra de criança.
"Bel, você é minha melhor amiga.
Téo"
Na estante de livros, nossos preferidos. Nós íamos ler no jardim. Isabel lia alto para eu ouvir, pois sempre teve uma dicção perfeita e eu sempre fui preguiçoso. Gostava das histórias, de imaginar, mas passar os olhos pelas palavras me desagradava.
- Vou tomar banho, fique aqui.
concordei com a cabeça.
Era sempre assim. Isabel ia tomar seus banhos demorados de mocinha e eu ficava no quarto dela, procurando com o que me entreter. era um quarto de menina, mas eu sempre achava alguma distração. Afinal, eu e Isabel passamos a vida juntos e eu descobri e aprendi tudo com ela. Se as paredes tivessem ouvidos, como dizia Tia Inês para que não ficássemos cochichando a noite inteira, aquele quarto saberia tudo sobre nós.
Passavamos o dia entre uma brincadeira e outra, e quando íamos dormir confessavamos nossos pensamentos, nossas dúvidas, as coisas que imaginávamos. Eu sempre fui o mais medroso e Isabel, a dona das respostas. Mas vez ou outra ela me consultava sobre algum assunto e eu dava uma resposta, só porque não achava justo ficar calado, e ela acreditava com muita força no que eu dizia. Eu ficava orgulhoso de ter tanta credibilidade para Isabel, e nunca entendi o  porquê.
Abri a gaveta de Isabel, lá estavam desenhos, prendedores de cabelo, cadernos da época do colégio.
Isabel não era muito boa aluna, passava a aula de fofoquinha com as amigas, enquanto eu que era mais sozinho, me dedicava mais aos estudos. Bel queria ser atriz, e sempre disse que matemática não lhe serviria. Isabel é uma boa atriz, de fato. Mas mal sabia ela, no auge dos nossos dezessere anos, o rumo que a vida traria para nós.
A chuva ainda caía lá fora, o carnaval ainda corria na rua, mas nós não estávamos no mundo. estávamos em casa, protegidos e guardados pelos anos que moravam ali dentro, protegidos por nossos próprios fantasmas, nossas recordações, os vultos distantes que na casa eram vivos, parte de nós.
Isabel interrompeu meus pensamentos abrindo a porta de madeira, fazendo barulho, trajando a antiga camisola. Cor-de-rosa, com flores, cheia de babados. Os cabelos compridos e molhados ao longo das costas. Por alguns segundos, me esqueci de tudo que tinha acontecido, voltei no tempo. Isabel era a mesma menina e eu ainda o mesmo Téo.
- Quanto tempo não vestia isso. Tinha me esquecido a sensação de algodão antigo tateando a pele.
Me deu um meio sorriso.
Deitou na cama, se esparramando. O lençol tinha cheiro de guardado, de antigo. Era tudo muito empoeirado e faria mal as minhas alergias. Mas quem se lembra de alergias quando se trata da alma?
- Reparou que a chuva cessou, Téo?
- Nem tinha me dado conta.
Se levantou abruptamente, ficou em pé na cama para alcançar o armário. Isabel era pequenininha, bem menor que eu, e isso a deixava antiga mais graciosa, pois conservava nela o ar de menina. Puxou com esforço uma caixa pesada. Eu me lembrava daquela caixa, só não conseguia lembrar o que se guardava ali dentro. Puxou com eforço a luneta.
Claro, como pude me esquecer? Enquanto morou aqui Isabel foi apreciadora exímia do céu, gastava às vezes um dia inteiro observando. Especialmene à noite, pois adorava as estrelas e lua. Hábito que herdou do pai.
- Ainda tem medo de subir no telhado?
Eu tinha.
- Tenho.
- Mas faria por mim?
- Qualquer coisa por você, Isabel.
Me deu a mão.
Subiu na mesa que ficava em baixo da janela.
- Eu vou primeiro.
Disse para me aliviar.
pôs os pés na janela e se agarrou nas telhas, em um pulo estava no telhado.
- Agora me passe a luneta e suba.
Gritou comandando.
Assim fiz, como ela orientou. Isabel era sempre a cabecilha, coordenava toda as brincadeiras. Iventava, mandava, dizia como tinham que ser. E era a primeira a se aventurar, como se tivesse que me proteger. Agora estávamos os dois lá em cima, eu contendo meu meu medo de altura, e Isabel como se alcançasse o apse da realização, trançando os cabelos, como se tivesse encontrado a paz.
- Relaxa, Téo. Não há como aproveitar a vista se ficar nessa tensão toda.
Segui seu conselho e me deitei nas telhas como ela, segurando sua mão, me dava segurança.
- Téo, você acredita em Deus?
- Não.
Respondi rápido, sem pensar muito no que ela perguntava.
- E quem você acha que fez tudo isso, que controla esse céu, que cuida do meu pai - suspirou mais fundo- e de Cecília?
- Não sei, Isabel.
Ficava meio impaciente quando ela me perguntava essas coisas. Tem certos pensamentos que doem. Me contestar sobre a existência de Deus foi algo que nunca fiz. Tive formação religiosa, mas com o tempo fui perdendo a crença em tudo. Era mais fácil responder que não acreditava mecanicamente, sem ter que pensar nessas coisas.
- Téo, você mentiria para mim?
- Ah, Isabel, que tolice é essa agora? você sabe que eu não minto para você.
Ficu um minuto em silêncio, olhando as estrelas na luneta, quando olhou para mim, com um olhar profundo e indecifrável.
- Quando meu pai morreu, subimos para olhar as estrelas. Eu chorava sem parar pois pensava que nunca mais o veria e que onde estava agora, não havia ninguém para cuidar dele. Entregar seu leite quente antes de dormir, levar o jornal até sua cama, cantar canções para que ele dormisse, ouvir as mesmas histórias todas as vezes que ele quisesse contar. Você então me disse que eu não me preocupasse com isso, que meu pai viraria uma estrela e seria a mais brilhante que eu conseguisse ver e que Deus enviaria anjos para cuidar dele por mim. Era mentira?
Quando Isabel se sentia angustiada com alguma coisa, eu precisava de todo jeito arranjar uma forma de deixá-la mais calma. Pois Isabel era a paz para mim e se ela estava angustiada, era ver meu mundo entrar em guerra. Talvez por uma questão até de egoísmo, eu precisava ter Isabel contente. Ela me trazia a resposta de todas as coisas do mundo, e eu quase nunca lhe era útil. A não ser em momentos de extrema aflição como hoje e aquela outra noite no telhado.
- Crianças não sabem o que dizem, Isabel. Creem em tudo.
Vi uma lágrima escorrer dos seus olhos.
- As coisas simplesmente deixam de existir ou nos tocamos de que elas nunca existiram realmente?
Perguntou ingênua.
- Acho que percebemos que era tudo fantasia infantil, uma forma de explicar o que era sem explicação e aplacar dores que eram grandes demais para o coração de criança.
Soltou minha mão devagar.
- Téo, então só por hoje vamos ser crianças? Para que pelo menos, essa noite, os anjos cuidem do meu pai - suspirou fundo outra vez- e de Cecília.

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