quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

15- Final Feliz

Chegamos até as ruas, o ponto máximo onde se podia andar de carro. Isabel fez sinal para que eu estacionasse. Desceu do carro e quando viu que eu continuava parado, bateu no vidro da janela.

Era o que faltava, estava próximo do fim, do recomeço. O bloco passava à nossa frente e Isabel tinha pressa para seguir com ele. Pessoas cantavam, dançavam, lançavam suas serpentinas e confetes, eu me esqueci até da fome que tinha. Saí do carro pelo olhar insistente de Isabel, mas ainda me faltava a coragem e a certeza que ela tinha. Segurou minha mão e me arrastou até o meio da multidão carnavalesca, sua voz suave gritava a marchinha o mais alto que podia.
Era assim que terminaria a nossa missão, a nossa aventura, talvez a última delas e a mais importante. Em nossas vidas vazias, de adultos ocupados e quadrados, como todos os outros, algumas coisas haviam perdido o sentido para nós e queríamos mais que tudo recuperá-las. Fomos à casa, enfrentamos a perda, os vultos do nosso passado, a dor, as lembranças, mas entendemos enfim, o que nos faltava. Tínhamos perdido a magia, esquecido o que era de fato felicidade. Aquele grãozinho que se encontra nas coisas mais simples e que vem pequeno dentro de nós até tomar proporções infinitas. Até mesmo Isabel tinha apenas uma vaga lembrança desta sensação de ser feliz.
Depois de tudo que tínhamos feito, realizado, conversado, era só o que nos faltava depois de tanta teoria, o de fato, SER alegre. Isabel me abraçou com toda a força, com grande apego e carinho. Passaram-se anos desde que ficamos amigos, desde nossas brincadeiras de infância, mas nossos pactos de amizade infantis foram verídicos, estávamos juntos agora, como ficaríamos até o fim. Eu tinha aprendido a me desfazer de tanta coisa, de quase tudo que me fazia mal. Alguns medos e inseguranças ainda me acompanhavam, mas eu me sentia tão mais forte! Tinha conseguido consolidar o homem, sem perder o menino que cresceu tímido e sensível, entre as quatro paredes da casa de Isabel.
Uma tranquilidade repousava em mim, uma calmaria que não pensava que seria capaz de sentir. Era sempre tão atordoado por emoções negativas e agora eu não pensava mais na tristeza ou na solidão. O rosto de Isabel refletia a mesma paz. Recordei-me imediatamente do nosso último carnaval, e à todo segundo me vinha um deja vú.
A velha pergunta que fazia a Isabel, mesmo em silêncio. Se havia tempo para sermos felizes, já não me assolava, já me faltava a incerteza natural, característica da minha personalidade. Pensava nas lembranças com uma nostalgia carinhosa, mas enxergava além daquilo, podia ver os horizontes do futuro nos trazendo coisas boas. Começava a entender a importância da casa, de nossos dias lá dentro, daquele carnaval para nossas vidas. Terminamos nossas reflexões à tempo para pegar o último bloco. Isabel segurou minha mão e encostou em seu coração.
- Está sentindo?
Eu sentia, e meu coração tinha o mesmo ritmo que o dela. Não pensamos no dinheiro, não pensamos no mundo, nos problemas, nossas vidas não seriam mais vazias, estávamos salvos eternamente da mediocridade e isso era motivo o suficiente para os nossos sorrisos estampados e constantes.
Era o último dia de festa para os demais foliões, mas o nosso carnaval estava só começando...

14 - Adeus, Isabel

Adormeci no jardim como Isabel, tão realizado e pleno quanto ela. Acordei mais cedo e levei-a em meus braços para a cama (onde ainda estava), e a leveza que a noite passada havia me causado tinha ido embora, para dar lugar a uma sensação de nervosismo que me fazia percorrer inteiras a casa e a alma. Algo estava me perturbando mais que o normal, porém não conseguia definir o que era. Os efeitos do dia anterior, do sol e da calma, tinham de fato terminado, e tudo à minha volta me desagradava. Aquela casa, aquelas lembranças, tudo aquilo estava se tornando irritante. Alguma coisa percorria minha alma de um jeito incômodo. Doía em algum lugar, mas não sabia exatamente aonde. Machucava alguma coisa, mas não sabia de fato o quê. Precisava parar aquela sensação que me corroia. Se Isabel estivesse acordada, perguntaria a ela o que fazer, mas dormia ainda, como fazia sempre.

Já cruzava a sala pela terceira vez. Uma inquietude tinha tomado conta do meu jeito pacífico de sobreviver. A casa parecia mais leve, mais iluminada, achava até que o sol estava batendo mais forte na janela de Cecília. O mistério que ela era, estava longe de desaparecer, nunca se resolveria. Mas ficava na casa e na gente uma lembrança boa, como se o peso que sua presença carregava, tivesse ido embora com a chegada do sol, com o pedido de luz de Isabel. Ainda assim, algo estava insuportável para mim. Dei um soco na parede com toda a força que meus fracos músculos permitiam. Meus dedos sangravam, afinal, tinha batido com força, entretanto não me provocava efeito algum. A sensação de angústia conseguia doer mais. Pude compreender Cecília, neste instante de irritação. Angústia era a pior coisa que um ser humano podia sentir. Doía tanto, tanto, e eu não podia nem sequer dizer onde.
Tínhamos libertado as energias negativas de Cecília, tínhamos remexido em nossas emoções e lembranças. E agora? O que nos restava na casa? O que ainda tínhamos para fazer e por quê? Isabel não acordava, nada acontecia, nada me livrava da minha irritação. Se tínhamos feito o que era para ser feito, se tínhamos realizado nossos objetivos ali dentro, por que eu me sentia tão vazio, por que não me sentia bem?
Caí no sofá e a maciez que eu tanto gostava me irritou também, eu precisava sair dali. Saí da casa batendo portas e pisando forte, a perturbação cada vez mais presente, ia tomando conta de mim, controlando minhas ações. Entrei no carro, liguei o motor, olhei para casa. Não sabia se ia voltar... Só voltaria se algo me arrastasse da mesma forma que agora me expulsava. Olhei para a cortina do quarto de Isabel balançando.
- Adeus, Isabel.
Acelerei para descer depressa a ladeira. Procurei um CD, pois o silêncio estava me enlouquecendo. Não tinha. Mas eu queria tanto ocupar minha cabeça! O silêncio podia ser uma péssima companhia. A maior parte da minha vida era vivida em silêncio, entre minhas telas, na minha solidão habitual. Mas estes dias, tão próximos de Isabel, de lembranças, de uma companhia, talvez eu tivesse me desacostumado a estar só. O silêncio faz pensar, e nem sempre nos diz o que queremos ouvir. Talvez por isso as pessoas aumentem o volume da música, criem formas cada vez mais fortes de se alienar e nunca desliguem a televisão. Esqueci que estávamos no carnaval. Só me lembrei ao ver as pessoas fantasiadas e prontas em suas batucadas. Ah, Santa Teresa ficava impossível de carro durante o carnaval. Estacionei. A legião de foliões não se importava com meus trajes atípicos, era carnaval. Uma fada passou por mim e sorriu, algo nela me lembrou Isabel.
Nunca fui de bloco, queria apenas olhar as pessoas. Já me sentia mais tranquilo. Mas também com um frio na barriga de medo e de culpa, como uma criança que foge da escola para cabular aula. Sentei na calçada. Estava fora da casa, mas ainda não tinha nenhuma noção de tempo. Começava a ter fome, mas algo me prendia na calçada, era melhor que eu me concentrasse, pelo menos até acalmar meus ânimos.
As questões que me fizeram sair de casa, não tinham ido embora. Ainda martelavam em minha cabeça. Se já tínhamos feito tudo àquilo, por que eu não me sentia completo, o que me faltava?
Lembrei de uma tarde com Isabel em Itaipava, quando ela me disse que os objetivos não são para serem alcançados, mas para serem metas. Na hora não fez sentido para mim, mas agora começa a se encaixar. O que queremos de fato não é conseguir nossos objetivos, afinal, depois que os alcançamos, um vazio nos toma, não há nada mais a se fazer, e é hora de buscar uma nova meta. Mas a busca é profunda, a busca é o que nos move. Isabel tinha sempre razão, mas algumas coisas eu demorava mesmo a constatar.
Passavam pessoas fantasiadas, brilhando, cantando... Fingindo, claro! Isabel tinha me dito que não se tratava de fingir, mas de deixar fluir os outros lados escondidos de nossa personalidade e talvez fosse isso mesmo. Mas todos assumiam um personagem diferente e se aproveitavam de suas máscaras para realizar seus desejos ocultos, isso era bom. Sem consequências, todo aquele cortejo seguia seus instintos e vontades, e quando a quarta feira trouxesse as cinzas para os foliões, ficariam as lembranças, serpentinas e algumas canções. E para qualquer ato falho, ou atitude quase injustificável, a infalível sentença: "era Carnaval".
Sentia-me um pouco culpado, apesar do alívio de sair da casa. Eu tinha prometido não deixar Isabel sozinha. Mas era mesmo muita pretensão acreditar que ela precisava da minha companhia.
Algumas meninas passaram sorrindo para mim, esbanjando seu charme carnavalesco. Aquilo fez que algo dentro do meu peito se inchasse, me senti poderoso, entretanto poucos segundos depois minha insegurança fez-me pensar uma série de coisas. Elas estavam apenas sendo simpáticas, como ficam as pessoas no Carnaval, elas estavam me gozando, não rindo para mim, mas de mim. Sem dúvidas, era isso e nada mais.
Isabel ria quando contava a ela minhas desventuras amorosas, sempre foram desastrosas. Minha insegurança era sempre capaz de acabar com tudo, mas em todo caso, acho que nunca me apaixonei por ninguém de verdade e quando penso na palavra paixão, me lembro apenas da paixão platônica por Cecília.
Quando Isabel me apontava que alguma amiga dela estava afim de mim, eu logo dava um jeito de distorcer a menina e a história. Acreditava que havia algo de errado com a tal pretendente, ou que ela estava confundindo alguém comigo, e Isabel me olhava calada com aquele olhar de quem já ouviu a mesma história muitas vezes, até que desistia e deixava meus romances por minha conta.
Muitas pessoas me diziam que Isabel era apaixonada por mim, sobretudo quando éramos adolescentes, porém nunca consegui acreditar. Como Isabel poderia gostar de mim? E além do mais, eu era cego demais por Cecília para notar a flor que brilhava em Isabel, e que desabrochava esbanjando toda a beleza que hoje tinha atingido seu auge. Mas a paixão de Isabel, fictícia ou não, não a impediu de ter diversos namorados. Isabel gostava deles, até chorava de saudade quando eles iam para longe, mas nunca chorava por um fim (não na minha frente). Dizia sempre que assim ia ser melhor, que ela não podia se submeter a algo que lhe fazia mal, e logo estava feliz de novo. Era tão bem resolvida e isso só fazia crescer minha admiração, uma vez que eu demorava meses para sair de casa após o fim de um relacionamento, voltava atrás e pedia para voltar, fazia drama, lia poemas e chorava por horas a fio agarrado em lembranças. Eu era fraco demais. Fraco demais para me reerguer como Isabel, fraco demais para entender certos mistérios, e fraco o suficiente para abandonar Isabel por conta da minha inquietação.
O carnaval passava na minha frente e eu ali, alheio. Fiquei lembrando todos os meus anos de Carnaval, em casa, sozinho, recebendo Isabel para alimentá-la ou me contar as novidades de sua farra carnavalesca, que ela vivia a esmo. Fiquei imaginando Isabel passar por ali, pulando, sambando, sorrindo do jeito espontâneo que eu tanto adorava, ela sem dúvida, destacava-se no meio daquela multidão por ser a mais bonita e, sobretudo, a mais feliz.
Como em uma cognição, uma idéia me veio à cabeça e a irritação que me fez sair da casa tomava meu corpo, mas agora por outra razão, como se eu tivesse entendido o que nos faltava. Libertamos o peso da presença de Cecília, iluminamos a casa, remexemos em nossas lembranças, de como costumávamos ser, mas esquecemos do principal, de nós. Faltava sermos felizes. Saí da calçada atônito, precisava pegar o carro, encontrar Isabel, pedir desculpas pelo egoísmo, pelo abandono e dizer a ela o que enfim, eu tinha constatado.
Peguei o carro que demorou a engatar, conseguindo me irritar mais ainda, mas era uma irritação saudável, pois me movia, me arrastava para o que eu ainda tinha para concluir.
O caminho parecia mais longo que o normal, mas avistei logo a casa e a janela de Isabel, do mesmo jeito de quando saí. Abri a porta nervoso, subi as escadas, Isabel estava na sala, presa ao tecido, realizando com leveza mais um de seus voos. Eu estava apressado, como se precisasse agir imediatamente, mas ao entrar em casa e me deparar com a presença de Isabel, uma calma me tomou.
Ela levantou a cabeça, sorriu compreensiva para mim.
- Estava esperando você voltar.
- Isabel, me desculpe, eu estava nervoso, eu estava irritado, eu não entendia, eu não soube o que fazer, fui tão imaturo, insensato, egoísta...
Fez sinal para que eu me calasse.
- Estava esperando você voltar.
Repetiu a afirmação e os olhos amendoados me ofereceram colo e refúgio. Saiu do tecido com a leveza que lhe era habitual, segurou minha cabeça e encostou sua testa na minha delicadamente, beijou- me o rosto e me sorriu. Dos nossos olhos caíram lágrimas, não foi preciso nenhuma palavra. Isabel compreendia, perdoava e parecia que tinha tido a mesmo estalo que eu.
Entrou para o seu quarto e saiu vestida de Colombina, da mesma forma que chegou aqui. Eu obedeci ao ritual e vesti meu moletom velho e surrado. Queria levar tanta coisa dali comigo, mas Isabel me repreendia com os olhos toda vez que minhas mãos tentavam carregar algo. Era necessário que a casa ficasse intacta, da mesma forma, do mesmo jeito. Era como um refúgio dos nossos fantasmas, sentimentos, aflições, guardava com afeto quem éramos e quem havíamos deixado de ser. Guardava as festas de tia Inês, guardava as fantasias de Cecília, suas dores. Guardava a lembrança festiva de tio Vicente na volta de cada pescaria. Mantinha viva nossa infância, nossos dias, nossas aflições, nossos sonhos. Era o nosso santuário.
Os olhos de Isabel tinham um ar de dor pela partida, mas de realização. Olhou em volta de cada cômodo com carinho e com lágrimas nos olhos. Beijou a foto de tia Inês que ficava no quarto dela e a foto da família no escritório de tio Vicente. Depois olhou para mim, decisiva e pronta para sair. Fechamos a porta da casa e ela me sorriu alegre. Finalmente a sensação que eu procurava sentir começava a se manifestar dentro de mim, e acredito que dentro de Isabel também. Entramos no carro, olhando saudosos para casa e esperançosos para o que estava por vir.

13 - Para ver o sol

Ainda não acreditava que tinha adormecido ali, na porta do quarto de tia Inês. Não fazia idéia das horas, mas parecia ser madrugada ainda. Olhei de novo pelo buraco da fechadura, Isabel tinha adormecido. Estava deitada na cama de tia Inês e parecia ter pesadelos, pois se mexia à todo instante e tinha uma expressão assustada. Forcei a porta para abrir, num ímpeto de salvá-la de qualquer coisa ruim. Estava aberta, achei estranho, mas entrei. Talvez Isabel tivesse aberto para mim, deveria saber o quanto eu queria entrar. Ela ainda vestida e maquiada, dormia na cama e os cabelos negros fugiam ao coque, esparramando-se pelo lençol. Voltavam ao seu rosto as feições de menina.

Deitei-me ao seu lado, tomando o cuidado necessário para não acordá-la. Fiquei observando sua respiração, parecia ofegante. Ah, Isabel, não se desespere, eu pedia em silêncio esperançoso. Virou-se de frente para mim e segurou minha mão, acho que podia sentir minha presença.
Passou a mão nos cabelos, despenteando-os de vez. Das longas madeixas cheias, caíram em seu rosto dois cachos delicados. Enquanto observava o brilho dos seus cabelos, ela acordou abruptamente e me abraçou com a mesma força do abraço que me deu quando cheguei à casa. Senti pingar no meu ombro uma lágrima quente, Isabel chorava. Um choro sem soluço, mas profundo como uma enchente.
- Sonhei uma coisa, Téo. Sei onde Cecília está!
Sua voz estava cheia de certeza, mas eu estava perplexo.
- Ela não se encontrou, não está em um lugar bom. Lá só tem pessoas tristes como ela, pesadelos e medos. Ela ainda precisa de luz, de muita luz.
Saiu do meu abraço e foi até a janela do quarto de tia Inês, que nunca tinha sido aberta, se minha memória não falhava. Fez força contra a ferrugem e a poeira e escancarou a janela.
Ainda era noite, mas o sol dava os primeiros sinais da sua presença.
- O sol quer nascer, vamos deixá-lo entrar.
Arrancou dos pés as sandálias altas e segurando o longo vestido de gala, saiu do quarto. Atravessou o corredor com rapidez, como se tivesse pressa de agir. Entrou no escritório e abriu as janelas com força, correu até a biblioteca, a sala, a cozinha, o seu quarto e fez o mesmo movimento apressado e urgente em todos os cômodos.
Parou então em frente à escada de Cecília. Respirou fundo, segurou com mais força a barra do vestido e subiu pisando forte. Ao entrar no quarto, lágrimas escorreram dos seus olhos instantaneamente, mas parecia corajosa e plena. Olhava em volta com um sorriso terno, com carinho pela irmã que estava longe e perceptivelmente saudosa de sua presença fria. Abriu as janelas do quarto de Cecília, como em um ritual, que lhe dava paz.
- Agora vem!
Puxou-me pelo braço até o jardim, seguindo até o roseiral, chegando ao ponto mais alto, estendeu os braços para o céu.
- É disso que precisamos. Eu, você e Cecília.
Pela primeira vez tinha dito o nome da irmã sem respirar fundo antes. Parecia que tinha se libertado do medo de pronunciar o nome dela.
- Você não quer dormir, Isabel?
Parecia bastante sonolenta.
- E perder a chegada do sol?
Estava encantada, como se assistisse ao maior dos espetáculos e falava de ver o nascer do sol, como algo óbvio. E talvez para ela fosse.
Isabel sentou-se na grama, sem medo de sujar o vestido. Seus cabelos bagunçados estavam mais lindos que nunca, e a expressão de realização brilhando em seu rosto.
Eu estava distraído com ela e com tudo a nossa volta. Isabel me deu um beslicão forte no braço.
- Preste atenção!
Ordenou séria.
Isabel parecia exausta, mas como estava linda! Fiquei olhando a cena de fora, prática que me era tão comum, principalmente com ela, que era sempre uma bela paisagem. Isabel saíra do seu baile de gala, despenteada, a maquiagem dos olhos borrando, entre as flores, deitada na grama. Era como um poema. Os primeiros raios de sol brilhando em seu vestido de cetim e em seu rosto as expressões perfeitas. Quis pintar aquela cena, quis Isabel em minha tela. Fiquei imaginando suas cores e seu brilho refletido em minhas tintas. O sol apresentava um belo espetáculo. Fazia-se presente e hipnótico em sua aparição, mas eu queria observá-lo refletido nos olhos de Isabel. Era ainda mais bonito.
Esparramou-se na grama, com os braços abertos. Virou o rosto delicado para mim e me permitiu um sorriso cheio de plenitude e realização. Encostou o queixo no braço de pele macia e branquinha.
- Agora posso dormir.
Fechou os olhos de imediato, como se estivesse todo o tempo pronta, esperando o momento certo para adormecer. Mas eu não era como Isabel e começava a sentir a insônia presente em mim. Corri até a casa para buscar algo para desenhar, com receio de deixar Isabel lá, sozinha. Não havia trazido nada para desenhar, tinha até me esquecido desse prazer, às vezes me ocorria isso.
Isabel costumava dizer que precisava atuar, necessitava tanto quanto respirar, para que não se sentisse sufocada. Achava bonito o jeito que ela falava das coisas que gostava, eu nunca fui assim.
A vida era mesmo injusta... Isabel se sentindo sufocada por não poder atuar, servindo pipocas e sorrisos no Cine Santa. Seu sonho era o cinema, e ironicamente, foi o que ela conseguiu.
Depois que Isabel e Cecília cresceram e saíram de casa, tia Inês voltou à Arraial do Cabo, para levar uma vida pacata, e Isabel teve que trabalhar muito para se manter, abandonando seu antigo sonho de ser atriz. Eu terminei a escola e fiquei de papo pro ar, para só dois anos depois ingressar na faculdade de belas artes, e minha vida tem sido a base da herança que me foi deixada, pintando, vendendo um ou outro quadro. Mas, no entanto, Isabel parece mais feliz, nunca entendi.
Não tinha papel, não tinha lápis, não tinha nada que escrevesse na casa. Lembrei-me dos diários de Cecília. Havia algumas folhas em branco. Arranquei-as com cuidado e corri até a sala para pegar próximo à lareira, carvão. Era o que me restava, e a vontade de desenhar me tomava o corpo inteiro e nada mais dividia espaço com esse desejo em minha cabeça.
Corri até onde estava Isabel, o desenho se construiu sem esforço, minha mão era empurrada por um impulso maior, em poucos minutos estava pronto. Ainda faltavam cores, ainda faltava o perfume, das flores e de Isabel. Mas suas formas descansadas estavam lá, no papel amarelado e sentido dos diários de Cecília.
Estava lá seu cabelo bonito, suas mãos delicadas e todo o meu apresso por ela.

12 - Buraco da fechadura

Isabel tinha surtos de vaidade, e me deixava sozinho para ir ao quarto de tia Inês no fim das tardes para ficar provando todos os vestidos, sapatos, se maquiando na penteadeira por horas a fio. Só saía de lá à noite, toda bonita e perfumada. Quando saía do quarto, ficava um tempão andando pela sala ouvindo o sapato alto fazer barulho no piso de madeira e rindo como uma criança.
Tia Inês não deixava Isabel usar sapato alto, nem maquiagem, talvez por conta disso, mesmo com o passar dos anos, manteve um jeito leve ao se arrumar. Não precisava de nada disso, nem combinava. Era linda ao natural. Mas era engraçado ver Isabel realizar seu desejo infantil de ser vaidosa e produzida como tia Inês.
Ainda fazia frio. A chuva cessava durante o dia para dar espaço a um sol fraquinho, mas que animava Isabel, e então à noite voltava a cair o temporal e baixava consideravelmente a temperatura. Isabel me deixava sozinho e eu ficava em frente a lareira pensando naquilo tudo. Nós dois naquela casa, conflitando com o que havia dentro de nós. Tantas coisas que eu nem ousava antes disso questionar ou descobrir, mas que eram inevitáveis agora com Isabel e todas as nossas lembranças.
Quanto tempo mais ficaríamos ali? Perguntei-me enquanto observava o fogo da lareira.
Isabel era minha bailarina na caixinha de música, que eu observava e seguia hipnotizado. Gostava de assisti-la em suas necessidades, fossem do corpo ou da alma, pois só sua presença já me fazia bem. Minha vida era monótona e vazia. De certa forma, aqueles dias tinham me devolvido o brilho ingênuo da juventude. Juventude que eu podia constatar em minha identidade, mas que há muito tempo não sentia em minha alma. Era Isabel, meu pequenino e profundo raio de sol. Olhar aquela sala vazia fazia eu me lembrar de anos atrás, da presença de Cecília.
Quando eu e Isabel estávamos apenas começando a nos interessar pelo mundo à nossa volta fora dos limites da casa, de nossas brincadeiras, era Cecília quem observávamos. Ela parecia tão parte desse mundo novo que se abria para nós, como uma porta. Ela sim existia. Digo existir na essência filosófica da palavra. Ela se lançava para fora (pelo menos era o que achávamos), para além do mundo fechado em que eu e Isabel nos condicionávamos. E nós queríamos tanto gozar dessa existência.
Talvez Isabel não visse Cecília assim, não tomasse da sua vida uma janela para o desconhecido. Ou talvez tomasse, mas não se contentasse em apenas observar a vista da sacada através de Cecília, como eu. Li uma vez que a ciência havia comprovado que as mulheres sentem as coisas diferentes dos homens. Engraçado. Queria ver provarem que alguém sente igual à outra pessoa. Imaginei como seria se Isabel sentisse como eu. Como seria a vida sem nossos debates, sem a poesia no olhar de Isabel para o mundo que tanto me encantava.
De fato, eu gostava muito da diversidade dos pontos de vista. Satisfeito com minhas conclusões, desejei Isabel ao meu lado e seus olhos brilhantes, sedentos de saber e de vivência. Caminhei pelo corredor escuro a caminho do quarto de tia Inês. Ouvi a voz doce de Isabel desafinando lindo em uma marchinha de carnaval. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Minha vontade de vê-la era tanta, que não resisti às grandes fechaduras. Quando pequenos ficávamos olhando tia Inês embrulhar os presentes de Natal, para ver o que cada um ia ganhar.
Da fechadura via apenas a cama empoeirada de tia Inês e os pedacinhos de Isabel, que a breve abertura me permitia. Vi seus cabelos ondulados fazerem volume, balançando enquanto amarrava-os em um coque bem preso. Observei as mãos finas prenderem seu cabelo em um laço de fita sedoso.
Isabel levantou-se da penteadeira ainda batendo com leveza em seu rosto a maquiagem, que corava ainda mais suas bochechas, naturalmente rosadas. Levantou-se e pude ver que o corpo bem feito estava coberto por um vestido de gala de tia Inês, que ela só usava em casamentos, bodas e outras festas importantes. Era um vestido dourado, que os anos haviam deixado cor de bronze e ainda mais bonito pela nostalgia. O espartilho desenhava as curvas de Isabel e deixava seu colo à amostra. Moveu os braços em um gesto delicado e borrifou perfume em si. As mãos pareciam mais finas e alongadas e um anel de brilhantes solando em seu dedo médio. Uma expressão sedutora e séria entregava ao rosto de Isabel os anos que esquecia de refletir, pelo sorriso de menina que mantinha. Isabel era uma mulher, uma linda mulher. Como eu podia ter demorado tanto para perceber? Murmurava quase em silêncio uma canção triste agora, enquanto se olhava no espelho, se admirando, notando suas semelhanças com tia Inês. Brincando de ser a mãe, talvez. Só agora eu sabia reconhecer que mesmo com todas as suas falhas, tia Inês era uma mulher fantástica. Perdeu cedo o marido e teve que trabalhar para manter a casa e as filhas, sofrendo todo o tipo de dificuldade pelo preconceito irritante com as mulheres solteiras ou com a falta de experiência. Foi uma mãe ausente, não porque quis, mas porque não pôde estar mais perto.
Com o passar dos anos e principalmente após a conversa com Isabel, pensava nela com uma enorme admiração, e nos últimos dias com certo dó, ao imaginá-la recebendo a notícia da morte de Cecília.
Queria estar com Isabel, mas a porta estava trancada, eu não era convidado do seu baile. Era o seu momento mãe e filha, e eu não podia atrapalhar. Deixei o corpo pesar e escorregar até o chão. À noite eu era sempre atormentado por sonhos que me atrapalhavam a dormir, acordando de hora em hora com vultos, e o frio que me assustava. O sono começava a se fazer notório no meu rosto e a se manifestar no meu corpo. Podia crer que adormeceria ali, com os murmúrios e a saudade que eu estava de Isabel.

sábado, 28 de novembro de 2009

11- Desenho das nuvens

Isabel me pôs no chão após alguns minutos e voos. Logo depois, ficou em pé ao meu lado, descabelada, com as faces mais coradas que o normal e uma expressão de quem ainda tinha perguntas.
Essa expressão lhe era muito comum, nada lhe satisfazia por muito tempo. Logo arranjava novas perguntas, curiosidades. Queria entender tudo, sentir, questionar. Fomos até a varanda olhar o céu, Isabel apontava sorridente o desenho das nuvens.
Notei a inquietação percorrer o corpo dela. Reparei nos pés batendo em movimento contínuo e ritmado, depois as penas que balançavam em uma quase coreografia, as mãos passeavam pelas pernas, o cabelo, o rosto, o vestido e de novo apontavam mais nuvens. Ela pensava em algo.
Eu tinha certeza que viria mais alguma de suas perguntas e que eu não saberia responder, porque Isabel sempre me fazia cogitar questões que eu desconhecia. Em sua transparência e seu mistério, parecia bem resolvida consigo mesma. Falava, expunha, e até mesmo as ideias que ela guardava só para ela, dentro dos olhinhos miúdos, eram muito bem ruminadas.  Eu sufocava as emoções dentro de mim, fingia que não existiam, e assim fui criando uma enorme bola de neve de sentimentos, que ao longo dos anos me somou uma gastrite, que de vez em quando me ataca e me restringe muito a alimentação.
A inquietação que dançava no corpo e na mente de Isabel, se fez presente dos seus olhos quase castanhos que me olharam ansiosos, pedindo uma explicação.
- O que te aflige, Isabel?
- Estou confusa
O silêncio entre nós durou o tempo de uma pulsação até Isabel retomar o que dizia.
- Cometi tantas injustiças. Como fui má, Téo! Tantos julgamentos errados, egoísmos, mágoas tolas e infantis de criança mimada.
Falava com certo desprezo e parecia esquecer que falava de si mesma. Como se fizesse menção a uma outra pessoa.
- Você tem mágoas, Téo?
- Não.
Menti depressa.
As conversas com Isabel sobre os seus sentimentos acabavam sempre me afetando muito. Ela me fazia refletir, lembrar  e notar que o tempo todo aqueles sentimentos residiam em mim, compondo minha bola de neve emocional.
- Já sentiu remorso por ter agido injustamente com alguém?
Estava aflita e minha resposta parecia ser capaz de livrá-la um pouco de tal inquietação que se manifestava nos olhinhos nervosos.
- Não.
Menti de novo.
Não aliviei o fardo de Isabel de novo pela minha covardia. Os maiores defeitos (que só agora eu conseguia ver, rompendo a imagem de perfeição que fiz dela) e virtudes de Isabel, eram proveninentes de uma só caracteristica: Era humana demais.
Humana para sentir, para se afeiçoar, para gostar depressa e com todo o coração, para se entregar, para fazer pelo outro, para perdoar. A partir disso, construiu o que eu mais admirava nela. Sua consciência social, seu olhar poético, sua doçura, o calor da sua presença. Entretanto, era sujeita demais aos erros, às fraquezas. Era marionete de sua sensibilidade, que lhe causava aquele sorriso puro e essa habitual inquietação.
- Tive tantas falhas com a minha mãe.
A imagem de Tia Inês me veio mais forte à cabeça.
- Tive tanta raiva por sua desatenção, por sua ausência, por ter sido relapsa e distante nos momentos em que eu mais precisei. Por não ter dado atenção ao meu desejo de ser atriz, por nunca ter me arrumado para uma festa, até por nunca ter pegado no pé, me controlar, como as outras mães faziam. Penso em todos os perigos aos quais fiquei sujeita, tantas situações em que fiquei exposta sem necessidade. Aprendi à duras penas que a vida maltrata quem não tem defesa. Eu esperava que aquela pobre mulher, mergulhada tanto quanto eu em abandonos, fosse minha armadura e não notei que ela fez o que podia.
Suspirou fundo e uma lágrima grossa escorreu pelo rosto.
Senti minha gastrite se manifestar, notei que minhas emoções começavam a mostrar que não tinham ido embora.
- Mas nessa casa tenho menos medo, sabe? Sinto que aqui dentro é possível retomar, consertar, reconstruir esses pedaços de mim.
Parecia confiante e destemida, como há muito tempo já provara que era.
Eu quis chorar também. Queria ter a mesma certeza que Isabel de que a retomada dos meus pedaços perdidos também era possível, pelo menos dentro da casa. Quis ter a mesma força, o mesmo coração corajoso.
Isabel abriu os braços pedindo meu afago. Nosso abraço servia muito mais para mim do que para ela, que não fazia ideia do bem que me causava, só sendo ela mesma.
Notei que a tarde se despedia de nós aos poucos, Isabel olhava fixa para o corredor, para o quarto de Tia Inês. Sentei-me no sofá enquanto Isabel passou por mim e atravessou o corredor. Senti as manifestações dolorosas da minha gastrite, mas senti também que se tornava menor a bola de neve que entravava o meu caminho. Por Isabel, pela casa.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

10- Acrobacia Aérea

Ao sair da cozinha, Isabel  se pendurou no tecido que ficava preso ao teto da sala. Estava empoeirado e sujo, mas ela parecia pouco se importar. Saltou abruptamente do chão para o tecido, mas fez com tal leveza, que eu demorei alguns segundos para notar que Isabel não estava ao meu lado mas acima de mim.
Lembro bem do esforço de Isabel para convencer Tia Inês a deixá-la participar das aulas de circo e pendurar no teto aquele tecido, contrariando toda a decoração harmônica de sua sala.
Sentei no sofá largo e confortável e percebi no ar a poeira que subia. Fiquei observando Isabel se enrolar no tecido, cada vez mais alto.
- Téo, lembra quando eu disse que queria ser um passarinho?
De novo essa história? Isabel tinha umas manias esquisitas, será que andava esquecendo o que falava? Deixei para lá o que eu pensava das manias dela.
- Lembro, Bel.
O tecido despencou do alto do teto, Isabel  se prendia a ele não sei de que forma, e se desenrolava em um movimento delicado, indo de um lado para o outro, descendo até onde eu estava, quase um voo.
- Essa foi a minha solução.
Sorriu docemente. Os cabelos cobrindo todo o rosto, me deixando ver apenas o sorriso, mas eu imaginava o resto. Os olhinhos que ficavam mais miúdos quando sorria, as bochechas salientes e a expressão serena. Tornou a subir, escalando com leveza até o ponto mais alto. Parecia concentrada, e os cabelos negros e ondulados esbanjando comprimento e maciez.
- Só me sinto livre aqui em cima.
Exclamou Isabel e sua voz fez eco pela sala.
- Tanto tempo sem me recordar o que era liberdade!
Isabel era estranha mesmo.
Saiu de casa cedo, sempre mandou na própria vida, viajou para onde quis, chegou em casa sempre à hora que bem entendeu. Como poderia ter liberdade presa e um mero pedaço de pano e não em uma vida inteira seguindo apenas as suas vontades, por mais insensatas que às vezes elas fossem? Talvez Isabel fosse complexa demais para a minha cabeça limitada. Eu pensando tolices à respeito de assuntos que ela parecia dominar...
- Você é livre, Téo?
Se balançava no alto, indo de um lado para o outro. Será que Isabel se questionava à todo instante à respeito das coisas que me perguntava? Algumas coisas eu simplesmente ignorava. Não procurava entender por medo da dor, e tal medo me tornava vazio. Exatamente o que me diferenciava de Isabel. Ela não tinha medo de remexer dentro de si, se descobrir, despencar no ar.
- Não sei.
Respondi secamente.
- Acho que sim.
Completei ainda seco.
- Nada te prende?
Perguntou surpresa em mais uma queda livre do tecido até meu rosto.
Não tenho pais, não casei, nem tive filhos. Não tenho namorada, nem emprego. Nunca fiz empréstimo e sempre andei na lei.
- Nada.
Estava confiante.
Isabel continuava presa ao tecido, mas agora com o rosto muito próximo de mim, exibindo expressões que eu desconhecia, de curiosidade e espanto.
- Pode fazer o que quiser? Qualquer coisa?
Não sabia. Podia?
- Téo, não confunda ser livre com não dever satisfações, vai muito além.
Fiquei ainda mais confuso. Ela parecia compreender tudo que eu pensava, entrar dentro de mim, algumas vezes. Tentou ficar mais confortável e na altura do meu corpo, ainda presa ao tecido.
- Existem algumas prisões que partem de nós mesmos. Como medos, insegurança, vergonha, comodismo, pessimismo...Eu nunca estou livre. Essas prisões não me deixam voar alto, me impedindo de ser passarinho. Nada te empurra para baixo?
Seus olhos quase castanhos se fixaram nos meus, procurando uma resposta. Isabel mais uma vez estava certa. Além da lei natural da gravidade, eu tinha muitas daquelas prisões me empurrando para baixo. Tantos medos! Uma vergonha enorme de ser quem eu era, a insegurança de crer que eu nunca seria o suficiente, e aquela tristeza que havia se instalado, e que era meu maior impecilho.
Uma lágrima escorreu dos meus olhos sem esforço. Estava tão preso o tempo todo sem me dar conta.
- Estou algemado, Isabel.
Seu rosto tinha agora uma expressão sensata e amiga, me era confortável, me salvava sempre. Ah, meu doce refúgio Isabel. Não disse nada, não foi preciso.
Presa ao tecido pelas pernas, me estendeu a mão delicada e macia.
- Venha voar comigo, Téo.

domingo, 22 de novembro de 2009

9- Relógio

Entramos em casa abraçados, ainda cheirando a rosas. Eu segurando Isabel de costas, pela cintura, sentindo o cheiro do seu pescoço. O cheiro que amadureceu com ela, mas que não perdeu a essência.
Isabel era tão branquinha, tão cheirosa, tão encantadora! Uma melodia sublime da qual eu jamais cansava.
Olhamos o relógio na parede da cozinha. O tempo literalmente tinha parado para nós. Isabel suspirou profundamente e encheu duas canecas com chá de erva doce.
- Eu tenho tantas saudades, Téo. Essa época de carnaval me deixa saudosa demais, lembrando de tudo que já vivi. Tantos anos desde que saí dessa casa, tanto tempo! Onde estávamos, o que fizemos?
Isabel tinha razão. Eu não sabia, não tinha feito nada. Outro dia éramos crianças, tomando chá naquelas cadeiras para proteger nossos corpos do frio. Agora, éramos as mesmas crianças, com algumas vivências, tomando o mesmo chá, na mesma cadeira para proteger a alma. Não amadurecemos...
Para acalmar nossas dores, manipulávamos o tempo naquela casa sem hora.
- Do que você sente falta, Bel?
Criei uma imagem de Isabel como uma semideusa e acreditava na minha invenção. Achava que ela era diferente de mim, que sua perfeição não alcançava minhas fraquezas de humano. Meus desejos da carne, minhas carências, medos. Para mim, Isabel não sentia nada disso. Mas eu me enganava mais uma vez. Isabel era mulher, humana, tão frágil quanto eu. Sujeita a tudo que eu estava e precisava tanto de mim quanto eu dela.
Isabel começou a chorar na minha frente. Vi dos seus olhos, caírem lágrimas grossas que pingavam no chá. Os olhos amendoados encharcados, Isabel estava toda mergulhada em lágrimas e faltas.
-Sinto falta de Cecília, Téo. Mesmo longe ela se fazia presente nas cartas que mandava e dentro de mim, alimentava a esperança de que ela voltaria. Agora sei que não está aqui e que não voltará nunca mais.
Segurou minha mão e fixou-a em seu peito.
- Sentes, Téo? Sentes a minha dor? É fisica essa queimação dentro de mim, sinto doer bem aqui.
Indicou com a mão onde doía.
Queria sentir a queimação de Isabel, queria tirar a dor que ela sentia. Como eu queria aplacar, pelo menos um pouco, a falta de Cecília dentro dela.
Abraçou-me com vontade de desabar. Senti-a tão fraca que achei que fosse desmaiar em meus braços.
- Não me deixe, Téo. Não me deixe nunca.
Eu não deixaria, por nada.
- Eu te pergunto agora, Téo. Ainda há tempo para sermos felizes?
Toda a vida fui frágil e pessimista, pendurava na força que Isabel tinha para desacreditar na vida. Mas quando ela precisava de mim, uma força estranha crescia, me fazia acreditar que tudo ia ficar bem, que ainda havia tempo. Não sabia como, mas me vinha segurança. Para deixar Isabel feliz, eu seria capaz de qualquer coisa. Inclusive brigar comigo mesmo, romper convicções aparentemente concretas e imutáveis. Era o que eu fazia agora.
- Enquanto houver carnaval e estivermos juntos, sempre haverá tempo.
Secou as lágrimas e me pareceu honestamente mais aliviada. O que me trouxe um orgulho bom, de fazer bem a Isabel, pelo menos uma vez.

Ao sairmos da cozinha, olhei de novo para o relógio na parede. Continuava parado.