sábado, 28 de novembro de 2009

11- Desenho das nuvens

Isabel me pôs no chão após alguns minutos e voos. Logo depois, ficou em pé ao meu lado, descabelada, com as faces mais coradas que o normal e uma expressão de quem ainda tinha perguntas.
Essa expressão lhe era muito comum, nada lhe satisfazia por muito tempo. Logo arranjava novas perguntas, curiosidades. Queria entender tudo, sentir, questionar. Fomos até a varanda olhar o céu, Isabel apontava sorridente o desenho das nuvens.
Notei a inquietação percorrer o corpo dela. Reparei nos pés batendo em movimento contínuo e ritmado, depois as penas que balançavam em uma quase coreografia, as mãos passeavam pelas pernas, o cabelo, o rosto, o vestido e de novo apontavam mais nuvens. Ela pensava em algo.
Eu tinha certeza que viria mais alguma de suas perguntas e que eu não saberia responder, porque Isabel sempre me fazia cogitar questões que eu desconhecia. Em sua transparência e seu mistério, parecia bem resolvida consigo mesma. Falava, expunha, e até mesmo as ideias que ela guardava só para ela, dentro dos olhinhos miúdos, eram muito bem ruminadas.  Eu sufocava as emoções dentro de mim, fingia que não existiam, e assim fui criando uma enorme bola de neve de sentimentos, que ao longo dos anos me somou uma gastrite, que de vez em quando me ataca e me restringe muito a alimentação.
A inquietação que dançava no corpo e na mente de Isabel, se fez presente dos seus olhos quase castanhos que me olharam ansiosos, pedindo uma explicação.
- O que te aflige, Isabel?
- Estou confusa
O silêncio entre nós durou o tempo de uma pulsação até Isabel retomar o que dizia.
- Cometi tantas injustiças. Como fui má, Téo! Tantos julgamentos errados, egoísmos, mágoas tolas e infantis de criança mimada.
Falava com certo desprezo e parecia esquecer que falava de si mesma. Como se fizesse menção a uma outra pessoa.
- Você tem mágoas, Téo?
- Não.
Menti depressa.
As conversas com Isabel sobre os seus sentimentos acabavam sempre me afetando muito. Ela me fazia refletir, lembrar  e notar que o tempo todo aqueles sentimentos residiam em mim, compondo minha bola de neve emocional.
- Já sentiu remorso por ter agido injustamente com alguém?
Estava aflita e minha resposta parecia ser capaz de livrá-la um pouco de tal inquietação que se manifestava nos olhinhos nervosos.
- Não.
Menti de novo.
Não aliviei o fardo de Isabel de novo pela minha covardia. Os maiores defeitos (que só agora eu conseguia ver, rompendo a imagem de perfeição que fiz dela) e virtudes de Isabel, eram proveninentes de uma só caracteristica: Era humana demais.
Humana para sentir, para se afeiçoar, para gostar depressa e com todo o coração, para se entregar, para fazer pelo outro, para perdoar. A partir disso, construiu o que eu mais admirava nela. Sua consciência social, seu olhar poético, sua doçura, o calor da sua presença. Entretanto, era sujeita demais aos erros, às fraquezas. Era marionete de sua sensibilidade, que lhe causava aquele sorriso puro e essa habitual inquietação.
- Tive tantas falhas com a minha mãe.
A imagem de Tia Inês me veio mais forte à cabeça.
- Tive tanta raiva por sua desatenção, por sua ausência, por ter sido relapsa e distante nos momentos em que eu mais precisei. Por não ter dado atenção ao meu desejo de ser atriz, por nunca ter me arrumado para uma festa, até por nunca ter pegado no pé, me controlar, como as outras mães faziam. Penso em todos os perigos aos quais fiquei sujeita, tantas situações em que fiquei exposta sem necessidade. Aprendi à duras penas que a vida maltrata quem não tem defesa. Eu esperava que aquela pobre mulher, mergulhada tanto quanto eu em abandonos, fosse minha armadura e não notei que ela fez o que podia.
Suspirou fundo e uma lágrima grossa escorreu pelo rosto.
Senti minha gastrite se manifestar, notei que minhas emoções começavam a mostrar que não tinham ido embora.
- Mas nessa casa tenho menos medo, sabe? Sinto que aqui dentro é possível retomar, consertar, reconstruir esses pedaços de mim.
Parecia confiante e destemida, como há muito tempo já provara que era.
Eu quis chorar também. Queria ter a mesma certeza que Isabel de que a retomada dos meus pedaços perdidos também era possível, pelo menos dentro da casa. Quis ter a mesma força, o mesmo coração corajoso.
Isabel abriu os braços pedindo meu afago. Nosso abraço servia muito mais para mim do que para ela, que não fazia ideia do bem que me causava, só sendo ela mesma.
Notei que a tarde se despedia de nós aos poucos, Isabel olhava fixa para o corredor, para o quarto de Tia Inês. Sentei-me no sofá enquanto Isabel passou por mim e atravessou o corredor. Senti as manifestações dolorosas da minha gastrite, mas senti também que se tornava menor a bola de neve que entravava o meu caminho. Por Isabel, pela casa.

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