sexta-feira, 6 de novembro de 2009

7 - Os diários de Cecília

Isabel saiu cedo para cuidar do jardim. Eu ainda dormia e ela me deixou um bilhete dizendo que estava cuidando das rosas, e que eu não fosse atrás dela.
Obedeci como o bom cumpridor de ordens que sou e depois de me fartar com o café da manhã que ela deixou na mesa da cozinha para mim, aproveitei para olhar os diários de Cecília que escondi em baixo da cama.
Ainda me dava certo pânico ler aquilo, porque Cecília não deixava de ser mistério. Ler seus escritos era entrar no desconhecido e o novo me assusta.
Peguei um dos cadernos e abri em uma página aleatória.
"Fiz treze anos hoje e meu pai não está mais aqui. Foi um dia triste, como todos os outros. Mamãe tentou me alegrar com uma festa , mas os convidados tristes, um parabéns desanimado, as pessoas frias. Tentavam me passar alegria por mais um ano de vida, mas dentro dos seus pensamentos me desejavam pêsames pela morte do meu pai. Somente Isabel e seu amigo Téo chegaram perto de me alegrar. Pois mesmo diante da confusão que está nossa casa e nossa vida, corriam pelos cantos como se nada os importunasse. Meu pai deixou uma carta, acho que sabia que não resistiria até essa data. Na carta, ele diz que meu presente é a biblioteca, que ela é toda minha. Que posso ficar nela lendo, pensando, o quanto eu quiser. Sempre quis a biblioteca para mim, então por que não me alegro? Não sei...
Há uma barreira em mim, bloqueando a entrada da luz, da alegria."

Continuei a folhear o diário, procurando mais coisas. A tão conhecida carga de adrenalina sobre mim.

"Acho que estou amando. Coisa forte para dizer, eu sei. Mas só pode ser amor essa coisa que deixa meus dias um pouco mais coloridos, que me faz deitar no jardim sob o sol, apreciando o desenho das nuvens e sorrir de forma menos vazia e um pouco mais sincera. Tenho menos dor, me embriago menos,pois quero curtir lúcida cada momento vívido dessa paixão que reserva inocência. Sei que o amor é um mistério profundo da vida, por isso não quero entende-lo, quero apenas senti-lo palpitando dentro do meu coração."

Ao fechar a página me lembrei que Cecília tinha um namorado. E que durante seu namoro, os cuidados com ela eram menos rigorosos, pois costumava ter hábitos mais leves. Recordei de observá-la namorando no portão. Aquilo me causava tanto ciúme e tanta inveja, pois eu imaginava que aquele garoto devia saber tudo sobre Cecília, e eu queria conhecê-la tanto quanto ele. Ver Cecília apaixonada por ele e não por mim me causava despeito e eu desejava que ele morresse, às vezes. Como Cecília podia gostar de mim se eu era só um garotinho que brincava com a sua irmã mais nova? Recordei também a primeira vez que senti culpa.
Tanto eu desejava que o namorado de Cecília morresse e um dia soube que ele estava muito doente, com um tumor na cabeça. Em poucos meses faleceu, e Cecília nunca mais sorriu da mesma forma.
Fiquei imaginando porque a vida de alguém é feita de tantos desgostos. Será que algumas pessoas eram destinadas à infelicidade? Como podia? Há de fato o destino por trás dos acontecimentos ou nós temos livre arbítrio em nossas vidas?
De volta ao diário.
"Ultimamente tenho medo de tudo. É um pânico que me persegue. Medo de sair de casa, de entrar em casa, do dia, da noite, da chuva, de olhar para o céu. Tantas perdas a vida já me trouxe e pouco ainda tenho para perder, pois tudo já me foi levado, inclusive a esperança de ser feliz. Mas ainda assim, talvez por um mecanismo de defesa inconsciente, tenho medo. E as pessoas parecem ter medo de mim. Quando vou ao jardim, Isabel e Téo vão para a sala, e se chego na sala, voltam para o quintal. Ouvi mamãe dizendo à Isabel que não me incomodasse, que eu gostava de estar sozinha. Ora, quase ri. Quem é que gosta da solidão? Mas as pessoas estão tão preocupadas em não me desagradar, que se esquecem de me conhecer."
Fazia tanto sentido agora. Todos os olhares, as atitudes. Abracei o papel imaginando que dava a Cecília o abraço que nunca pude e que ela tanto merecia e precisava. Seria que Isabel demoraria para chegar? Confiei que sim e abri outro diário.
"O que é a morte? Fico pensando para onde as pessoas vão depois que morrem. Acho que ficam zanzando pela terra, nos condenando a sua presença fria. Sim, são eles. São eles que me fazem companhia nas noites mais frias, nos verões mais quentes, todos os dias, quase sempre eles estão aqui. Às vezes demoram, às vezes só passam, às vezes me tocam, às vezes só falam, às vezes sussurram, às vezes gritam. Às vezes sei o que querem, quase nunca consigo lhes dar. Alguns desistem, somem, outros persistem, voltam mais tarde. Outros revoltam, bagunçam as coisas, se machucam, me desesperam.
Sinto seus toques indolores, sua presença invisível. Fecho os olhos mas não os vejo com eles, e sim com a alma, e essa não posso proteger de tal presença. Se eles vêm por bem, por mal, por vir? Não sei. Desconheço suas vontades, tenho medo, não sei se é verdade. Confundo real e fantasia, vida e morte e me pergunto se é insanidade. Será?
Me belisco, tento ver de novo. Queria ter certeza de que é só a cortina balançando por causa do vento ou que as vozes que ouço são sonhos que tenho acordada, mas não consigo crer em nada.
Assumem as formas para me apavorar, para me confortar e estão perto de mim quando me sinto mais sozinha. Se alimentam da minha vontade, disposição, alegria e eu tomo as dores deles, sem querer. Não sei quem são, de onde surgem, o que querem, mas mesmo quando não se manifestam, sei que estão presentes e que andam comigo... sempre!
Ninguém mais se aproxima de mim, fico só eu e eles nessa necessidade de encontro, nessa falta de luz, de vida. Creio que estou tão morta quanto eles... Ou mais. "

Os sentimentos de Cecília estavam sendo passados para mim. Quem eram esses que lhe faziam companhia? Seriam presenças espirituais, insanidade, fantasia, fastasmas criados pela sua própria solidão? Apavorado, abri outra página.

"Não aguento mais! Já arrumei minhas coisas e agora preciso ir embora. Há muito tempo planejo essa viagem sem volta, mas sem coragem de dizer à minha mãe e de deixar Isabel aqui. Não temos muito contato devido à bolha que se forma ao meu redor, mas a amo. Pois a vi nascer e os momentos menos infelizes da minha vida foram devido a ela e a sua alegria. Porém estou sufocada e preciso correr o mundo, preciso aliviar um pouco desse peso. A angústia dói mais por não ser palpável. É quase física, pois sinto as pontadas dentro de mim, mas não consigo dizer onde dói e o que. Mas essa angústia me corrói à cada dia, e a vida vai virando apenas uma luta contra esse sentimento e essa sensação de vazio. Estou criando coragem para descer e dizer tudo o que quero. Estou me despedindo desse quarto, dessa casa, dessa vida vida. Preciso me encontrar. Onde será que eu estou? "

Ali terminavam suas anotações. Será que ela escreveu durante a viagem? O que se passava em sua cabeça quando voltou à casa, quando ligou para Isabel?

Cecília começava a ser decodificada. Criamos uma imagem diferente dela. De alguém distante que não precisava e nem queria de ninguém por perto. Quando na verdade, era uma menina sofrida e só, que precisava se deixar ser amada.

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