quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

14 - Adeus, Isabel

Adormeci no jardim como Isabel, tão realizado e pleno quanto ela. Acordei mais cedo e levei-a em meus braços para a cama (onde ainda estava), e a leveza que a noite passada havia me causado tinha ido embora, para dar lugar a uma sensação de nervosismo que me fazia percorrer inteiras a casa e a alma. Algo estava me perturbando mais que o normal, porém não conseguia definir o que era. Os efeitos do dia anterior, do sol e da calma, tinham de fato terminado, e tudo à minha volta me desagradava. Aquela casa, aquelas lembranças, tudo aquilo estava se tornando irritante. Alguma coisa percorria minha alma de um jeito incômodo. Doía em algum lugar, mas não sabia exatamente aonde. Machucava alguma coisa, mas não sabia de fato o quê. Precisava parar aquela sensação que me corroia. Se Isabel estivesse acordada, perguntaria a ela o que fazer, mas dormia ainda, como fazia sempre.

Já cruzava a sala pela terceira vez. Uma inquietude tinha tomado conta do meu jeito pacífico de sobreviver. A casa parecia mais leve, mais iluminada, achava até que o sol estava batendo mais forte na janela de Cecília. O mistério que ela era, estava longe de desaparecer, nunca se resolveria. Mas ficava na casa e na gente uma lembrança boa, como se o peso que sua presença carregava, tivesse ido embora com a chegada do sol, com o pedido de luz de Isabel. Ainda assim, algo estava insuportável para mim. Dei um soco na parede com toda a força que meus fracos músculos permitiam. Meus dedos sangravam, afinal, tinha batido com força, entretanto não me provocava efeito algum. A sensação de angústia conseguia doer mais. Pude compreender Cecília, neste instante de irritação. Angústia era a pior coisa que um ser humano podia sentir. Doía tanto, tanto, e eu não podia nem sequer dizer onde.
Tínhamos libertado as energias negativas de Cecília, tínhamos remexido em nossas emoções e lembranças. E agora? O que nos restava na casa? O que ainda tínhamos para fazer e por quê? Isabel não acordava, nada acontecia, nada me livrava da minha irritação. Se tínhamos feito o que era para ser feito, se tínhamos realizado nossos objetivos ali dentro, por que eu me sentia tão vazio, por que não me sentia bem?
Caí no sofá e a maciez que eu tanto gostava me irritou também, eu precisava sair dali. Saí da casa batendo portas e pisando forte, a perturbação cada vez mais presente, ia tomando conta de mim, controlando minhas ações. Entrei no carro, liguei o motor, olhei para casa. Não sabia se ia voltar... Só voltaria se algo me arrastasse da mesma forma que agora me expulsava. Olhei para a cortina do quarto de Isabel balançando.
- Adeus, Isabel.
Acelerei para descer depressa a ladeira. Procurei um CD, pois o silêncio estava me enlouquecendo. Não tinha. Mas eu queria tanto ocupar minha cabeça! O silêncio podia ser uma péssima companhia. A maior parte da minha vida era vivida em silêncio, entre minhas telas, na minha solidão habitual. Mas estes dias, tão próximos de Isabel, de lembranças, de uma companhia, talvez eu tivesse me desacostumado a estar só. O silêncio faz pensar, e nem sempre nos diz o que queremos ouvir. Talvez por isso as pessoas aumentem o volume da música, criem formas cada vez mais fortes de se alienar e nunca desliguem a televisão. Esqueci que estávamos no carnaval. Só me lembrei ao ver as pessoas fantasiadas e prontas em suas batucadas. Ah, Santa Teresa ficava impossível de carro durante o carnaval. Estacionei. A legião de foliões não se importava com meus trajes atípicos, era carnaval. Uma fada passou por mim e sorriu, algo nela me lembrou Isabel.
Nunca fui de bloco, queria apenas olhar as pessoas. Já me sentia mais tranquilo. Mas também com um frio na barriga de medo e de culpa, como uma criança que foge da escola para cabular aula. Sentei na calçada. Estava fora da casa, mas ainda não tinha nenhuma noção de tempo. Começava a ter fome, mas algo me prendia na calçada, era melhor que eu me concentrasse, pelo menos até acalmar meus ânimos.
As questões que me fizeram sair de casa, não tinham ido embora. Ainda martelavam em minha cabeça. Se já tínhamos feito tudo àquilo, por que eu não me sentia completo, o que me faltava?
Lembrei de uma tarde com Isabel em Itaipava, quando ela me disse que os objetivos não são para serem alcançados, mas para serem metas. Na hora não fez sentido para mim, mas agora começa a se encaixar. O que queremos de fato não é conseguir nossos objetivos, afinal, depois que os alcançamos, um vazio nos toma, não há nada mais a se fazer, e é hora de buscar uma nova meta. Mas a busca é profunda, a busca é o que nos move. Isabel tinha sempre razão, mas algumas coisas eu demorava mesmo a constatar.
Passavam pessoas fantasiadas, brilhando, cantando... Fingindo, claro! Isabel tinha me dito que não se tratava de fingir, mas de deixar fluir os outros lados escondidos de nossa personalidade e talvez fosse isso mesmo. Mas todos assumiam um personagem diferente e se aproveitavam de suas máscaras para realizar seus desejos ocultos, isso era bom. Sem consequências, todo aquele cortejo seguia seus instintos e vontades, e quando a quarta feira trouxesse as cinzas para os foliões, ficariam as lembranças, serpentinas e algumas canções. E para qualquer ato falho, ou atitude quase injustificável, a infalível sentença: "era Carnaval".
Sentia-me um pouco culpado, apesar do alívio de sair da casa. Eu tinha prometido não deixar Isabel sozinha. Mas era mesmo muita pretensão acreditar que ela precisava da minha companhia.
Algumas meninas passaram sorrindo para mim, esbanjando seu charme carnavalesco. Aquilo fez que algo dentro do meu peito se inchasse, me senti poderoso, entretanto poucos segundos depois minha insegurança fez-me pensar uma série de coisas. Elas estavam apenas sendo simpáticas, como ficam as pessoas no Carnaval, elas estavam me gozando, não rindo para mim, mas de mim. Sem dúvidas, era isso e nada mais.
Isabel ria quando contava a ela minhas desventuras amorosas, sempre foram desastrosas. Minha insegurança era sempre capaz de acabar com tudo, mas em todo caso, acho que nunca me apaixonei por ninguém de verdade e quando penso na palavra paixão, me lembro apenas da paixão platônica por Cecília.
Quando Isabel me apontava que alguma amiga dela estava afim de mim, eu logo dava um jeito de distorcer a menina e a história. Acreditava que havia algo de errado com a tal pretendente, ou que ela estava confundindo alguém comigo, e Isabel me olhava calada com aquele olhar de quem já ouviu a mesma história muitas vezes, até que desistia e deixava meus romances por minha conta.
Muitas pessoas me diziam que Isabel era apaixonada por mim, sobretudo quando éramos adolescentes, porém nunca consegui acreditar. Como Isabel poderia gostar de mim? E além do mais, eu era cego demais por Cecília para notar a flor que brilhava em Isabel, e que desabrochava esbanjando toda a beleza que hoje tinha atingido seu auge. Mas a paixão de Isabel, fictícia ou não, não a impediu de ter diversos namorados. Isabel gostava deles, até chorava de saudade quando eles iam para longe, mas nunca chorava por um fim (não na minha frente). Dizia sempre que assim ia ser melhor, que ela não podia se submeter a algo que lhe fazia mal, e logo estava feliz de novo. Era tão bem resolvida e isso só fazia crescer minha admiração, uma vez que eu demorava meses para sair de casa após o fim de um relacionamento, voltava atrás e pedia para voltar, fazia drama, lia poemas e chorava por horas a fio agarrado em lembranças. Eu era fraco demais. Fraco demais para me reerguer como Isabel, fraco demais para entender certos mistérios, e fraco o suficiente para abandonar Isabel por conta da minha inquietação.
O carnaval passava na minha frente e eu ali, alheio. Fiquei lembrando todos os meus anos de Carnaval, em casa, sozinho, recebendo Isabel para alimentá-la ou me contar as novidades de sua farra carnavalesca, que ela vivia a esmo. Fiquei imaginando Isabel passar por ali, pulando, sambando, sorrindo do jeito espontâneo que eu tanto adorava, ela sem dúvida, destacava-se no meio daquela multidão por ser a mais bonita e, sobretudo, a mais feliz.
Como em uma cognição, uma idéia me veio à cabeça e a irritação que me fez sair da casa tomava meu corpo, mas agora por outra razão, como se eu tivesse entendido o que nos faltava. Libertamos o peso da presença de Cecília, iluminamos a casa, remexemos em nossas lembranças, de como costumávamos ser, mas esquecemos do principal, de nós. Faltava sermos felizes. Saí da calçada atônito, precisava pegar o carro, encontrar Isabel, pedir desculpas pelo egoísmo, pelo abandono e dizer a ela o que enfim, eu tinha constatado.
Peguei o carro que demorou a engatar, conseguindo me irritar mais ainda, mas era uma irritação saudável, pois me movia, me arrastava para o que eu ainda tinha para concluir.
O caminho parecia mais longo que o normal, mas avistei logo a casa e a janela de Isabel, do mesmo jeito de quando saí. Abri a porta nervoso, subi as escadas, Isabel estava na sala, presa ao tecido, realizando com leveza mais um de seus voos. Eu estava apressado, como se precisasse agir imediatamente, mas ao entrar em casa e me deparar com a presença de Isabel, uma calma me tomou.
Ela levantou a cabeça, sorriu compreensiva para mim.
- Estava esperando você voltar.
- Isabel, me desculpe, eu estava nervoso, eu estava irritado, eu não entendia, eu não soube o que fazer, fui tão imaturo, insensato, egoísta...
Fez sinal para que eu me calasse.
- Estava esperando você voltar.
Repetiu a afirmação e os olhos amendoados me ofereceram colo e refúgio. Saiu do tecido com a leveza que lhe era habitual, segurou minha cabeça e encostou sua testa na minha delicadamente, beijou- me o rosto e me sorriu. Dos nossos olhos caíram lágrimas, não foi preciso nenhuma palavra. Isabel compreendia, perdoava e parecia que tinha tido a mesmo estalo que eu.
Entrou para o seu quarto e saiu vestida de Colombina, da mesma forma que chegou aqui. Eu obedeci ao ritual e vesti meu moletom velho e surrado. Queria levar tanta coisa dali comigo, mas Isabel me repreendia com os olhos toda vez que minhas mãos tentavam carregar algo. Era necessário que a casa ficasse intacta, da mesma forma, do mesmo jeito. Era como um refúgio dos nossos fantasmas, sentimentos, aflições, guardava com afeto quem éramos e quem havíamos deixado de ser. Guardava as festas de tia Inês, guardava as fantasias de Cecília, suas dores. Guardava a lembrança festiva de tio Vicente na volta de cada pescaria. Mantinha viva nossa infância, nossos dias, nossas aflições, nossos sonhos. Era o nosso santuário.
Os olhos de Isabel tinham um ar de dor pela partida, mas de realização. Olhou em volta de cada cômodo com carinho e com lágrimas nos olhos. Beijou a foto de tia Inês que ficava no quarto dela e a foto da família no escritório de tio Vicente. Depois olhou para mim, decisiva e pronta para sair. Fechamos a porta da casa e ela me sorriu alegre. Finalmente a sensação que eu procurava sentir começava a se manifestar dentro de mim, e acredito que dentro de Isabel também. Entramos no carro, olhando saudosos para casa e esperançosos para o que estava por vir.

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