segunda-feira, 5 de outubro de 2009

4- Pique esconde

Deixei Isabel dormindo e fui fazer compras. Se íamos passar dias ali, era necessário comprar comida e outras coisas fundamentais. Passei também em casa, eu ia precisar de roupas. Entrei no carro e fiquei pensando em tudo o que tinha acontecido, tudo ainda parecia um sonho e eu tinha a impressão de que ia acordar no meu apartamento de Laranjeiras, achando que dormi demais.
Cheguei em casa e entrei para olhar Isabel dormindo. Sua expressão era bastante tranquila, descansada. Era bom que ela dormisse bastante.
Passei pela escada de Cecília e foi me dando uma vontade de entrar, aquela descarga de adrenalina no meu corpo. Se eu tivesse mais coragem...
Mas se nem Isabel ousava remexer essa parte da casa, imagine eu! Voltei para a cozinha para arrumar as compras , queria fazer a mesa de café da manhã da nossa infância. Tia Inês lotava a mesa de coisas gostosas antes de ir trabalhar, e nós que sempre acordávamos tarde, ficávamos horas comendo e fazendo palavra cruzada. Fiquei rindo sozinho das canecas penduradas, lembrando que nós adorávamos mudar a ordem só para irritar tia Inês, como os meninos levados que éramos.
Percebi que Isabel me observava encostada no vão da porta, com os longos cabelos bagunçados e a expressão de quem ainda tem sono. Ao ver que ela me olhava, corei as bochechas e tornei a ficar sério.
- Devia sorrir mais vezes, Téo. Fica mais bonito.
Me beijou a bochecha, fazendo barulho e se sentou ao meu lado.
 - Estou faminta. Onde arranjou tudo isso?
- Surpresa!
Os olhos de Isabel sorriram de um jeito pleno. Eu adorava fazê-la feliz. Qualquer esforço era recompensado pela alegria dela.
Isabel devorava um muffin de chocolate com voracidade e seus olhos brilhavam de gula ao olhar para tudo que ainda restava na mesa.
- Não precisamos comer tudo hoje, Bel.
Me deu um tapinha no braço e enfiou o que restava do muffin, e de boca cheia resmungou
- Não tem graça!
- Isabel, lembra quando tomávamos café da manhã aqui e brincávamos de forca? às vezes nos divertíamos tanto que ficávamos para o almoço.
Isabel quase se engasgou com o muffin que mastigava e começou a rir, batendo palmas.
- Téo, qual é a sua lembrança mais forte nessa casa? Qual era a coisa que você mais gostava?
Tantas coisas passamos, tantas coisas eram especiais, de tudo eu gostava. Quanto tia Inês saía, nós brincávamos de pique esconde, só nós dois. E Isabel realmente demorava para me encontrar, tanto que eu ficava com saudade dela.
- Das brincadeiras de pique esconde.
Seus olhos saltaram
- Se nós brincássemos de pique esconde agora?
- Já somos velhos para isso.
- Podemos ser velhos agora, mas aqui você escolhe a idade que quer ter, e teremos.
Fiquei ainda algum tempo na mesa, e Isabel se levantou. Fiquei olhando-a entrar no quarto e fechar a porta. O andar alongado e delicado, como se nem pisasse no chão.
Seria bom andar pela casa. Será que o quarto de tia Inês continuava do mesmo jeito? E a biblioteca? As milhões de gavetas do escritório...
Minha imaginação voou solta pela lembrança que eu tinha dos cômodos da casa.
Isabel voltou trajando um vestdo curto e sol, amarelo, com uma trança nos cabelos. Veio saltitando em minha direção.
- Pronto? Eu conto. Mas não vale no jardim nem no telhado. Se não, não nos encontraremos nunca mais.
Sorriu achando graça.
Foi em direção à parede e vendo que eu continua parado, resmungou impaciente:
- Vou começar a contar, hein?
Continuei estático na mesa ainda posta.
- 1, 2, 3...
Contava alto para me convocar à brincadeira.
Resolvi me mexer. Fui em direção ao corredor, todas as portas fechadas. Eu temia tanto aquele corredor! Isabel dizia que seu pai vinha visitá-la exatamente ali. Ela não tinha medo, mas eu sempre fui covarde. Mesmo com vontade de rever o tio Vicente.
Entrei no escritório tomando cuidado para não fazer barulho, aquelas portas de madeira rangiam demais. O escritório estava mais bagunçado que nunca. Papéis espalhados por todos os cantos, gavetas abertas, poeira. Na mesa, o portarretrato com a foto da família. Tia Inês à direita, com os cabelos compridos e tingidos, com um sorriso sincero e um vestido que lhe caia muito bem. Como era bonita na juventude! E eu nunca tinha notado. À esquerda Tio Vicente, com a barba grisalha  e a inseparável vara de pescar. Nunca soube responder com que ele trabalhava, só sei que pescava aos fins de semana. Tia Inês acarinhava os cabelos de Isabel, uma menina levada que fazia careta para a foto. Cecília ao lado do pai, sorria tristemente. Os cabelos muito curtos, o olhar distante. Olhava para a foto, mas via muito além. Aquela necessidade de se encontrar. Será que nós nos encontramos em algum momento da vida? Ou diferente de Cecília, não pensávamos naquilo.
- Lá vou eu!
Ouvi Isabel gritar, seus passos andando pelo corredor. Não queria ser encontrado, não agora, mal tinha adentrado o primeiro quarto.
Entrei devagar do armário do escritório. O cheiro de mofo e a enorme quantidade de poeira me faziam querer espirrar, mas eu tinha que me segurar enquanto Isabel passava por ali.
Abriu a porta fazendo barulho.
- Ah, não está aqui!
Cantarolava enquanto andava pelo corredor. Esperei ela passar para sair do armário empoeirado. No escritório não restavam muitas coisas. Tia Inês tinha se desfeito de quase tudo quando tio Vicente morreu. Muitas pessoas consideraram desapego, mas a verdade é que doía demais arrumar o cômodo e sentir a presença do falecido marido.
Era hora de passar para outro quarto. Olhei em volta e vi que Isabel não estava.
Entrei de rapina no quarto de Tia Inês. Tinha cheiro de naftalina. A cama alta, a roupa de cama muito velha e amarelada, a penteadeira com muitas jóias e perfumes antigos. Ela não tinha levado nada à Arraial do Cabo?
Quando Tia Inês saía, vínhamos ao seu quarto para pular na cama. Se ela sonhasse com aquilo!
Abri a gaveta de Tia Inês, lá estavam duas cartas. Abri o primeiro envelope, um bilhete de tio Vicente.
"Adorada Inês,
Viajo agora deixando contigo parte de mim, mas saiba que será curto o tempo em que ficaremos separados, e que pensarei em você à todo instante.Dê beijos nas meninas e pergunte à Isabel o que quer de natal, sem que ela perceba.
Uma atenção especial à Cecília, ela me parece melancólia demais.
Com amor,
Teu Vicente."

Dobrei a carta e pus de volta no envelope. Ler aquilo me fez sentir falta do velho tio Vicente, com a barba grisalha e as histórias sobre barcos e sereias. Quando ele morreu, eu era ainda um moleque, mas me recordo com clareza de sua gargalhada e do seu cheiro de maresia.
O outro envelope era um cartão postal da Bolívia, de Cecília.
"Mãe,
Ainda não penso em voltar para casa, mas não se preocupe, estou bem.
Cecília."
Não tínhamos contado à Tia Inês o ocorrido, imaginei como ela ficaria abalada. Não quis mais pensar nisso, saí do quarto. Isabel estava na sala, corri com cuidado até a biblioteca, me escondi entre as estantes.
A biblioteca era proibida, só Cecília podia entrar, nós nunca entedemos porque.
Isabel chorava como uma criança dengosa dizendo que aquilo era por preferência pela irmã. Cecília era distante de nós, sempre intocável, tinha o costume de estar sozinha, nós nunca podíamos estar onde ela estava.
Passei um pouco pelas estantes, sentido o cheiro de antigo dos livros.
Quando se completa a idade necessária para ver um filme com censura, a gente se sente grande, capaz, tendo acesso ao proibido. Era a mesma sensação.
A biblioteca que nos era proibida, era agora toda minha. Romances, enciclopédias, antologias poéticas. Eu seria capaz de passar a vida inteira ouvindo Isabel ler todos aqueles livros para mim, sem me cansar.
Ouvi Isabel se aproximando, escapoli. Fui olhando para trás, preocupado em não chamar atenção, em não ser visto. Tombei em um degrau e quase caí, me deparei com a escada de Cecília.

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