sábado, 3 de outubro de 2009

2- O Jardim

O Jardim estava bonito, apesar da grama alta que cobria nossos pés. A chuva tinha feito bem às flores e as folhas, bem verdinhas e vivas. De novo olhei a cena de fora. Isabel passeando por seu jardim distante da realidade que ela tinha que enfrentar, como se não pensasse mais em tudo que tinha acontecido. Procurava as melhores amoras e as depositava em sua cesta e quando notava minha observação, jogava amoras em mim como fazíamos quando éramos pequenos para irritar um ao outro e nossas mães, claro, por ficarmos todos sujos.
O jardim também tinha sido todo nosso. Guardava tantas brincadeiras! Corríamos pro ele com Bóris atrás de nós , nos sujavamos todos de amora e ligávamos a mangueira com a desculpa de aguar as plantas, mas só mesmo para ficarmos encharcados. Cecília também costumava ir ao jardim, mas nós não íamos quando ela ir. Isabel não era de explicar demais, só dizia que Cecília gostava de ficar sozinha. E enquanto Isabel ia se bronzear ao sol, eu ficava escondido observando Cecília no jardim.
era quando ela ficava mais bonita, entre as flores. Levava um livro ou ficava escrevendo. Quando fazia sol, só deitava na grama e ficava de olhos fechados. Queria tanto saber o que ela pensava, como era a vida dela. O mistério todo que ela guardava...
Quando ela voltava de madrugada para casa, também ia ao jardim. Esperava acordado a hora dela voltar, me preocupava. Vez ou outra eu mesmo a carreguei até a sala, ou a porta do quarto, mas gostava mesmo era de ver o que ela ia fazer. Voltava tonta, acompanhada por amigos que a deixavam aqui e iam embora. Muitas vezes tomava remédios para dormir, e eu ficava com vontade de abraçá-la e não podia, porque Cecília foi sempre aquela coisa intocável.
Começou a cair um chuvisco fraco, daqueles que gripam a gente.
- Isabel, vamos entrar? Está chovendo.
- Mais um motivo para ficarmos. Você se importava com sereno quanto tinha nove anos?
Me sorriu.
Se jogou na grama. A água da chuva que molhava seu rosto fazia transparecer um pouco na essência alegre natural de Isabel.
- Qual foi a última vez que você foi feliz, Téo?
Feliz... Qual tinha sido a última vez que fui feliz? Poderia dizer que tinha sido ontem, que estava, que nunca fui, porque o fato é que eu nunca tinha parado para pensar no que, de fato,era felicidade.
Caia do céu aquela chuva fina e eu fiquei tentando me lembrar a última vez que tinha tomado um banho de chuva espontaneo. foi no último carnaval que vivi, porque todos os outros apenas assisti da minha janela.
Eu e Bel éramos ainda garotos. Eu tinha acabado de completar dezoito e ela ainda faria no fim do mês.
Isabel fez questão de que´nós saíssemos em todos os blocos. Era nosso último dia de carnaval, algo próximo das dez horas da noite e estávamos desde de manhã de bloco em bloco, correndo atrás de bonde e estandarte. Na ladeira mais estreita de Santa Teresa, começou a tocar "Máscara negra" e o bloco subia sem parar. As pessoas pulavam, sambavam, cantavam, ninguém parava um segundo sequer e eu sendo empurrado por aquela massa de gente.
Alguns trovões de aviso e do céu desabou um temporal. A multidão carnavalesca comemorou porque tudo em tempos de carnaval é poesia, é beleza. Olhei para Isabel e lá estava ela, tão linda... Com seu melhor sorriso de felicidade mais pura. Ali fui feliz. Como nunca mais fui. E guardei aquela lembrança bem escondida na minha gaveta de boas recordações.
- No meu último carnaval.
suspirou profundamente, como quem sente saudade.
- E o que é felicidade para você, Téo?
Pensei de novo no episódio do carnaval e no que tinha feito dele o mais feliz.
- É estar em um temporal, rodeado por uma multidão desde o nascimento do sol, com tambores te ensurdecendo e achar que é poesia.
Virou o rosto delicado para mim.
- Ai, Téo.. você fala e parece filme!Sente falta dos nossos carnavais?
- Sinto falta da nossa felicidade.
Deitei a cabeça em sua barriga, sentindo a chuva cair.
- Acha que ainda há tempo, Bel?
- Dentro dessa casa, o tempo é uma abstração.
Sua voz era um sussurro, mas me passava credibilidade.
Começou a correr pelo jardim, de um lado para o outro, eu ainda deitado na grama, sem a força que Isabel tinha para tentar ser feliz.
- Lembra quando eu disse que queria ser um passarinho?
Isabel tinha cada lembrança...
- Você toda semana queria ser uma coisa diferente.
- sim, mas lembra quando eu disse que queria ser  um passarinho?
Que relevância tinha isso? Murmurei em sentido positivo. Caiu por cima de mim.
- Ainda reservo essa vontade em segredo, mas não diga a ninguém.
Isabel era uma menina. Isabel ainda era uma menina.e a sua meninice me salvava da mediocridade do mundo.
- Téo, se pudesse ser outra pessoa, quem seria?
- Não sei, talvez o Mauro, nosso professor de química do ensino médio.
Sorriu achando graça.
- Bem escolhido. Boa cabeça, bom físico, tem o fusquinha mais rodado de Santa. eu seria sua amiga se você fosse o Mauro.
Respondeu em tom de brincadeira.
Sentou com as pernas cruzadas e as maõs no queixo. Estava inquieta, mudando a todo instante de posição.
- Eu seria a Isabel dos carnavais. A Isabel que assumo como verdadeira nos dias de folia. a que digo que sou para os desconhecidos, a que controla minhas atitudes até quarta feira. Ela se parece comigo, só que é bem mais legal...
- Mas é mentira!
- Como mentira? Se vive em mim, se me controla e toma conta dessa Isabel sem graça de todos os dias comuns. É que no carnaval, Téo, somos quem queremos ser e não quem realmente somos.
- Mas é fingir!
- Fantasiar, Téo. e por que não? Não se trata de fingir mas de deixar fluir outros lados que moram em nós, mas que normalmente são ocultos por causa das nossas personalidades de rotina, personalidade que somos obrigados a ter pelo nosso cotidiano. Carnaval é isso, e é por isso que dá alegria.
beijou minha bochecha com delicadeza. E cortando qualquer possível pensamento meu de oposição, perguntou com rapidez.
- e se pudesse ser alguma coisa desse jardim, qual seria?
- O portão.
- Ora, Téo. com tanta coisa bonita por que logo o portão?
- Ele é o que permite a entrada a todas as coisas bonitas e assiste tudo o que acontece aqui. Acompanha toda essa beleza e tudo que é vivido, ele está sempre velando a vida do jardim. E você seria una árvore, adivinhei?
- Uma árvore? Deve ser chato ser uma árvore! eu queria ser uma borboleta. Ela está sempre deixando tudo mais bonito. Antes é uma lagarta e depois que vira uma borboleta, com toda a graciosidade e encanto, tem apenas vinte e quatro horas para viver. Mais vale um dia só intenso do que uma longe vida mansa.
Isabel sempre foi assim, intensa, vivendo cada dia com vigor, dando o máximo de si. Nunca entendi como aguentava minha calma quase preguiçosa de viver. Eu espero acontecer, Isabel não. Ela vai atrás dos acontecimentos.
- Isabel, já começa a escurecer. Vamos entrar?
- Vejo que não perde o medo de escuro. Mas vamos sim, que já estou com frio e farta dessa fantasia,preciso de um bom banho quente.

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