terça-feira, 6 de outubro de 2009

5 - O quarto de Cecília

Vi Isabel me procurando no jardim, acho que ela tinha esquecido que o jardim era proibido na brincadeira. Estava distante e subia à caminho do roseiral.
A escada do quarto de Cecília me chamava, não sabia quanto tempo aguentaria estar dentro da casa e não entrar. Subi as escadas na ponta do pé e quase me esqueci de que Cecília não poderia estar. O quarto dela também estava do mesmo jeito. Recordava com clareza o dia que tinha entrado lá e tentei inúmeras vezes retratá-lo em minhas pinturas de diversas formas.
A cama grande e encostada na parede, o teto baixo. Diferente do resto dos quartos, a cama de Cecília mal tinha lençóis, era mais empoeirado que os demais e agora, todo ensanguentado. Olhar para as manchas de sangue no chão, no colchão, me causava arrepios, mas compunha mais um dos mistérios do quarto de Cecília. Nas paredes, fotos e imagens recortadas de revistas, poesias tristes escritas na parede com letra trêmula, nada parecidas com as paredes do quarto de Isabel, que eram muito bem pintadas e com papel de parede florido contornando tudo. Tia Inês tinha mania de organização, imaginei que se ela entrasse no quarto da filha daquele jeito teria um ataque, como tinha quando eu e Isabel deixávamos almofadas no chão. Mas como Cecília era um segredo, seu quarto era seu refúgio e maior tradução, portanto, inacessível. Até para Tia Inês, até para ela mesma.
Era como se o quarto fosse vivo, como se a presença dela permanecesse. Toda a angústia que carregava no peito, que transmitia para nós e que estava impregnada em tudo ali. Ao lado da cama, um baú. Abri com cuidado, com medo do que encontraria. Muitos cadernos, diários. Datados de muito tempo. Uns com letra de criança, outras mais formatadas. Acho que os diários acompanharam a vida de Cecilia como uma forma de descarregar o peso de sua alma, que parecia imenso.
Dentro do baú, algumas outras coisas. Fitas de cabelo, perfumes, livros, as coisas de Cecília. E eu fui me lembrando dela com aquelas coisas, da presença e fui sentindo-a perto de mim. Mais uma vez a carga de adrenalina que ela me causava.
Próximo à janela, uma escrivaninha. Dentro das gavetas, havia de tudo. Postais, selos, envelopes, como se preparasse muitas cartas. No armário antigo, não havia nada. Apenas poeira e algumas teias de aranha.
Era aparentemente um quarto normal. Mas a energia dentro dele não permitia que fosse comum, havia algo de excêntrico, de vivo e de morto. da presença de Cecília e todo o seu mistério.
Fiquei um tempo parado, imaginando a vida de Cecília. Seus hábitos, seus medos, seus pensamentos, o que ela fazia no tempo em que ficava no quarto?
O que pensava? O que queria? Foi embora dessa vida porque se encontrou ou para se encontrar? Que encontro era esse?
Cecília permanecia aquele mistério, mesmo agora que era só uma estrela brilhante que víamos do telhado. De repente quis acreditar nisso, para vê-la outra vez, ainda que fosse brilhando no céu.
Abri o baú novamente, peguei os diários. Eu precisava ler, precisava entende-la. Agarrei seus antigos cadernos e desci até o quarto de Isabel, pensando em onde escondê-los. Sem muita criatividade, escondi-os em baixo da mesa. Ela não ia olhar ali, eu sabia.
Ainda queria voltar no quarto de Cecília, eu teria outra oportunidade? E de novo essa coragem?
Que horas seriam? Quanto tinha passado no quarto de Cecília perdido em pensamentos, e há quanto tempo estávamos brincando?
Olhei pela janela, caía a tarde. Lembrei do relógio que ficava na cozinha, estava parado. Isabel tinha razão, tempo nessa casa era mesmo uma abstração. Onde ela estaria agora? Ainda me procurando pelo jardim?
Sem querer o jogo inverteu, saí à procura dela. Nem na sala, nem no quarto, nem no jardim. Será que ela estava se escondendo de mim agora?
De todos os cômodos só faltava a garagem, desci as escadas da sala e lá estava ela. Brincando com uma velha boneca de pano descosturada. Ouvi os soluços, Isabel chorava.
- Isabel?
Os olhos dela saltaram aliviados das órbitas.
- Tééééo!
Cooreu em minha direção e se jogou nos meus braços.
- O que houve, Isabel? Por que você está chorando?
- Ai, Téo. Te procurei pela casa inteira, não te encontrei. Fui à todos os quartos, corredores. Até no jardim, até no telhado, por todos os cantos da casa. Pensei que você tinha ido embora, me deixado perdida no tempo, nessa casa.
Secou as lágrimas, ainda fanhosa.
Acalmei seu corpo junto ao meu, acarinhando seus cabelos, beijei sua testa.
- Não faria isso nunca, não te deixaria jamais.
Suspirou aliviada, ainda no calor do meu abraço. Apesar de toda a confusão, da nostalgia, dos minutos conturbados que vivíamos dentro da casa, era bom ter Isabel perto de mim. Ah, como era bom aquele abraço!

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