segunda-feira, 23 de novembro de 2009

10- Acrobacia Aérea

Ao sair da cozinha, Isabel  se pendurou no tecido que ficava preso ao teto da sala. Estava empoeirado e sujo, mas ela parecia pouco se importar. Saltou abruptamente do chão para o tecido, mas fez com tal leveza, que eu demorei alguns segundos para notar que Isabel não estava ao meu lado mas acima de mim.
Lembro bem do esforço de Isabel para convencer Tia Inês a deixá-la participar das aulas de circo e pendurar no teto aquele tecido, contrariando toda a decoração harmônica de sua sala.
Sentei no sofá largo e confortável e percebi no ar a poeira que subia. Fiquei observando Isabel se enrolar no tecido, cada vez mais alto.
- Téo, lembra quando eu disse que queria ser um passarinho?
De novo essa história? Isabel tinha umas manias esquisitas, será que andava esquecendo o que falava? Deixei para lá o que eu pensava das manias dela.
- Lembro, Bel.
O tecido despencou do alto do teto, Isabel  se prendia a ele não sei de que forma, e se desenrolava em um movimento delicado, indo de um lado para o outro, descendo até onde eu estava, quase um voo.
- Essa foi a minha solução.
Sorriu docemente. Os cabelos cobrindo todo o rosto, me deixando ver apenas o sorriso, mas eu imaginava o resto. Os olhinhos que ficavam mais miúdos quando sorria, as bochechas salientes e a expressão serena. Tornou a subir, escalando com leveza até o ponto mais alto. Parecia concentrada, e os cabelos negros e ondulados esbanjando comprimento e maciez.
- Só me sinto livre aqui em cima.
Exclamou Isabel e sua voz fez eco pela sala.
- Tanto tempo sem me recordar o que era liberdade!
Isabel era estranha mesmo.
Saiu de casa cedo, sempre mandou na própria vida, viajou para onde quis, chegou em casa sempre à hora que bem entendeu. Como poderia ter liberdade presa e um mero pedaço de pano e não em uma vida inteira seguindo apenas as suas vontades, por mais insensatas que às vezes elas fossem? Talvez Isabel fosse complexa demais para a minha cabeça limitada. Eu pensando tolices à respeito de assuntos que ela parecia dominar...
- Você é livre, Téo?
Se balançava no alto, indo de um lado para o outro. Será que Isabel se questionava à todo instante à respeito das coisas que me perguntava? Algumas coisas eu simplesmente ignorava. Não procurava entender por medo da dor, e tal medo me tornava vazio. Exatamente o que me diferenciava de Isabel. Ela não tinha medo de remexer dentro de si, se descobrir, despencar no ar.
- Não sei.
Respondi secamente.
- Acho que sim.
Completei ainda seco.
- Nada te prende?
Perguntou surpresa em mais uma queda livre do tecido até meu rosto.
Não tenho pais, não casei, nem tive filhos. Não tenho namorada, nem emprego. Nunca fiz empréstimo e sempre andei na lei.
- Nada.
Estava confiante.
Isabel continuava presa ao tecido, mas agora com o rosto muito próximo de mim, exibindo expressões que eu desconhecia, de curiosidade e espanto.
- Pode fazer o que quiser? Qualquer coisa?
Não sabia. Podia?
- Téo, não confunda ser livre com não dever satisfações, vai muito além.
Fiquei ainda mais confuso. Ela parecia compreender tudo que eu pensava, entrar dentro de mim, algumas vezes. Tentou ficar mais confortável e na altura do meu corpo, ainda presa ao tecido.
- Existem algumas prisões que partem de nós mesmos. Como medos, insegurança, vergonha, comodismo, pessimismo...Eu nunca estou livre. Essas prisões não me deixam voar alto, me impedindo de ser passarinho. Nada te empurra para baixo?
Seus olhos quase castanhos se fixaram nos meus, procurando uma resposta. Isabel mais uma vez estava certa. Além da lei natural da gravidade, eu tinha muitas daquelas prisões me empurrando para baixo. Tantos medos! Uma vergonha enorme de ser quem eu era, a insegurança de crer que eu nunca seria o suficiente, e aquela tristeza que havia se instalado, e que era meu maior impecilho.
Uma lágrima escorreu dos meus olhos sem esforço. Estava tão preso o tempo todo sem me dar conta.
- Estou algemado, Isabel.
Seu rosto tinha agora uma expressão sensata e amiga, me era confortável, me salvava sempre. Ah, meu doce refúgio Isabel. Não disse nada, não foi preciso.
Presa ao tecido pelas pernas, me estendeu a mão delicada e macia.
- Venha voar comigo, Téo.

2 comentários:

  1. Clara,não demora a postar o próximo capítulo...tô aqui me corroendo de curiosidade...tô fascinada!
    Muito bom o livro...

    bjos Gil

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